Futuro evangélico: eles serão maioria, mas o que pensam e o que querem?
Nunca antes na história deste país falou-se tanto na disputa dos votos evangélicos. Um dos motivos é o salto no número de brasileiros que se declaram cristãos evangélicos no país: estima-se que, em 2032, este será o maior grupo religioso no Brasil, ultrapassando a quantidade de católicos.
Com foco neste cenário, o UOL estreia nesta segunda-feira (26) um documentário que trata dos muitos entendimentos, contradições, desafios e visões políticas do grupo que passou a ocupar o centro do debate social e político no País. Você pode assistir ao lançamento acima ou no YouTube de MOV.doc.
Todos os entrevistados do documentário — uma produção de TAB e MOV, a produtora de vídeos do UOL — se identificam como cristãos evangélicos. Com o título "Ser evangélico no Brasil", o primeiro episódio traz o entendimento destas pessoas sobre a religião, os motivos que levaram à conversão, o preconceito que sofrem — e que praticam. O segundo episódio, "A política sobe ao púlpito", mostra como política e religião se misturam no País, fazendo com que a fé determine o voto. O material tem consultoria do antropólogo Juliano Spyer, autor de "Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam".
'Que tipo de crente você é?'
Não existe uma definição única sobre o que é ser evangélico. Um dos motivos é o fato de não haver uma centralização hierárquica como existe na Igreja Católica. As milhares de denominações evangélicas brasileiras podem ter entendimentos diferentes e até contraditórios sobre o conteúdo dos textos bíblicos e dos dogmas da fé. O jornalista Ricardo Alexandre, da Igreja Batista Água Viva, resume: "Ser evangélico é, por definição, não se prender a dogmas ou a catecismos. Do ponto de vista de um católico romano é um absurdo. Do ponto de vista do evangélico, um preço pequeno a se pagar pelo direito de interpretar a Bíblia do jeito que lhe dá na telha. Isso torna as igrejas evangélicas absolutamente múltiplas, a ponto de haver igrejas que não só são diferentes, como são opostas em posturas, em crenças, em práticas."
"Quando eu dizia que era crente, era muito comum as pessoas me questionarem. 'Você corta o cabelo, usa calça? Então que tipo de crente você é?'", relata a antropóloga Jacqueline Teixeira, hoje uma "desigrejada". Roupa, cabelo, modo de agir e pensar: nada é monolítico nas igrejas cristãs nascidas fora do catolicismo. Cada vez mais gigante, hoje esse segmento abriga desde denominações lideradas por pastores que condenam a homossexualidade, até templos conduzidos por pastoras lésbicas casadas - é o caso de Rosania Rocha e Lanna Holder, da Igreja Cidade de Refúgio, em São Paulo.
Em algumas, os cultos são mais sisudos e a liturgia lembra uma missa; em outras, cerimônias de "descarrego" ou "busca de dons espirituais e bênçãos", repletas de cânticos e emoção, promovem a glossolalia (fenômeno em que religiosos passam a falar palavras desconhecidas, as "línguas estranhas") e uma movimentação semelhante a de um culto afro.
Além da pluralidade, outro fator que impulsiona o crescimento das igrejas evangélicas é sua atuação nas periferias do Brasil, lugares onde muitas vezes o Estado não chega, onde essas instituições estão presentes em maior número do que qualquer outra. Na ausência do poder público, os fiéis ganham uma rede de acolhimento e apoio para resolver problemas domésticos (muitas vezes casos de violência), estudar (muitos exercitam a leitura por causa da Bíblia), conseguir créditos e empréstimos e lidar com vícios, por exemplo. O documentário visitou um dos muitos lugares do Brasil onde a maioria já é evangélica. Barra de Pojuca, distrito popular de Camaçari, a aproximadamente 70 km de Salvador (BA), tem apenas 1 igreja católica — e cerca de 80 evangélicas. De lá, histórias ajudam a entender esse mosaico.
Com um histórico de idas e vindas no uso de drogas, a doméstica Marli Costa conta que só conseguiu controlar a dependência química quando conheceu a cozinheira Cremilda Falcão, a Guinha. Fiel da Assembleia de Deus da Missão, Guinha sempre abrigou em sua própria casa pessoas que precisavam de ajuda - mas nenhum dependente químico. Hoje recuperada, Marli frequenta a mesma igreja da mulher que a ajudou e a quem chama de mãe. "Sou a prova viva do milagre. Eu sou o milagre. Hoje quero casar, ter um filho, ter um lar."
"É uma espécie de estado de bem-estar informal que as igrejas evangélicas estabelecem, principalmente nas comunidades periféricas", explica o capelão Davi Lago, da Primeira Igreja Batista de São Paulo. "Não é do nada que multidões estão nas igrejas."
'Demônio de saias'
Preconceito é um tema comum quando se fala de evangélicos, perfil em geral atrelado a valores conservadores no âmbito dos costumes, em assuntos como homossexualidade, gênero, liberação do uso de drogas e aborto. Eles são mais vocais em relação a essas questões que católicos, por exemplo.
A inspetora de alunos Rosimeire Rocha lembra do sofrimento durante a transição de sua filha, Erika Hilton, a primeira mulher trans eleita vereadora em São Paulo. Evangélica e na época extremamente conservadora - "eu era um demônio de saias", define -, Rosi expulsou Hilton de casa, após se desentenderem. "Ela estava sofrendo, sofrendo muito e eu não conseguia enxergar isso." Quando soube que a filha estava dormindo na rua, Rosimeire desesperou-se. Ela diz que a mudança não veio da igreja, do pastor, da comunidade, mas sim de uma conversa íntima que teve com Deus, durante uma oração de joelhos e véu na cabeça. A partir daí, entendeu que precisava acolher a filha.
O preconceito para o evangélico é uma via de mão dupla: ele sofre e também impõe. Jonas Conceição Carneiro, membro da Igreja Presbiteriana, em Barra de Pojuca, é quem conta: "Eu não gostava de ouvir um crente, ficava nervoso. Quando passavam, falavam: 'um dia você vai ser crente. Um dia você vai conhecer Jesus'", lembra-se o zelador. Ex-traficante, ele conta ter chegado a ganhar R$ 60 mil por semana com o tráfico de drogas -- dinheiro que "não trouxe o que eu tenho hoje". Jonas procurou uma igreja depois de ficar sob fogo cruzado num tiroteio. Escondeu-se da polícia nas águas da praia, e ali pactuou com Deus: se ele o tirasse daquela situação difícil, ele largaria o crime. "Tomei um tiro de raspão, mas Deus me deu o livramento. Daquele dia em diante, não quis mais saber de traficar".
A pastora Ana Rita Reis Lima, da Comunidade Evangélica Fé Vida e Graça (BA), viveu uma situação-limite como Jonas, antes de decidir virar evangélica. Ela recebeu uma forte descarga elétrica na adolescência e ficou meses internada entre a vida e a morte. Sua família tinha aversão aos crentes, a ponto de zombarem dos evangélicos que conheciam. No hospital, passou a receber a visita de uma evangélica voluntária, a quem alertou: "Não quero que você fale nada de coisa de crente para mim". Hoje, ela enxerga a experiência como milagre.
'Coisa do diabo'
O aumento no número de evangélicos faz crescer também sua importância política: além de ter mais representantes nas câmaras municipais e assembleias estaduais, o voto desse grupo pode, mais do que nunca, definir as eleições.
O presidente Jair Bolsonaro, que não é evangélico, recorre a frases de efeito sobre pautas conservadoras para criar identificação com parte desse grupo - com quem a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, tem bastante interlocução por ser evangélica. O PT de Lula tenta não perder de vista as lideranças evangélicas, no intuito de fortalecer o nome do ex-presidente entre os cristãos. Em setembro, a ex-ministra e candidata a deputada estadual Marina Silva (Rede), que é evangélica, declarou apoio a Lula.
Para Guinha, essa mistura, que antes parecia estranha, hoje faz mais sentido. "Botar um político no púlpito era coisa do diabo. Se o pastor fizesse um negócio desses, era reprovado por toda a igreja. [Hoje] o bom é que não é verdade que ser político é coisa do diabo. Meu açúcar, meu arroz, meu feijão: tudo é política."
Ficha técnica
Direção: João Ramirez
Consultoria: Juliano Spyer
Entrevistas e pesquisa: Juliano Spyer, Tiago Dias e Olívia Fraga
Montagem e finalização: Douglas Lambert
Produção: Natália Mota
Fotografia: Danillo Sperandio, Douglas Lambert, Larissa Teixeira, Liel Marin, Rafael Martins e Raquel Arriola
Fotografia adicional - Drone: Rafael Martins
Técnico de Som: Pedro Vieira
Coordenação de operações: Danillo Sperandio
Coordenação MOV: Caroline Monteiro e Juliana Carpanez
Coordenação TAB: Olívia Fraga
Gerente geral de MOV: Antoine Morel
Gerente geral de TAB: Alexandre Gimenez
Diretor de conteúdo UOL CS: Murilo Garavello