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Preta Rara: 'Não transava de luz acesa, sou uma mulher gorda e tinha vergonha. Hoje, me aceito'

Mais E aí, Beleza?
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Marcela Cartolano

Colaboração para Universa, em São Paulo

03/08/2022 17h00

Mulher, preta, gorda, artista, ativista, rapper, escritora, professora de história. Essas e muitas outras palavras definem Joyce Fernandes, sinônimo de inspiração, resistência e, como ela mesmo diz, de existência. Com projetos que incentivam mulheres a quebrarem estereótipos de beleza e assumirem seus corpos fora do padrão imposto pela sociedade, ela coloca em prática um importante trabalho como porta-voz das trabalhadoras domésticas em busca de visibilidade e respeito.

Na conversa com a maquiadora e colunista de Universa Fabi Gomes, na sexta temporada do programa "E Aí, Beleza?", transmitido toda quarta-feira, às 17h, no UOL Play, Preta Rara fala sobre a relação de aceitação do próprio corpo ao longo dos anos —por exemplo, fazer sexo de luz acesa, o que antes era impensável para ela por insegurança frente ao parceiro— e a necessidade de provocar nas pessoas a reflexão.

******INTERNET OUT******* SÃO PAULO, SP, BRASIL, 12-07-2022, 10h: ?Fabi Gomes recebe Preta Rara na 6ª Temporada do programa E aí, beleza?.? (Foto: Mariana Pekin/UOL).  ATENCAO: PROIBIDO PUBLICAR SEM AUTORIZACAO DO UOL - Mariana Pekin - Mariana Pekin
A rapper e escritora Preta Rara em entrevista a Fabi Gomes
Imagem: Mariana Pekin

"Eu sempre falo que meu cabelo crespo é para cima mesmo, porque ele cresce em direção a minha autoestima, para sempre lembrar que eu sou rainha e que eu tenho um papel importante nessa sociedade. Por mais que parte da sociedade queira me esconder, eu existo!"

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

UNIVERSA - Quem é Preta Rara na fila do pão?
Preta Rara - Preta Rara é mulher preta, gorda, de existência e resistência, e que se preocupa muito em não deixar as [mulheres] que estão atrás. Que pega na mão de todas porque alguém sempre está pegando na minha mão para eu seguir na caminhada. Trabalho muito para poder sobreviver da arte; já estou quase vivendo da arte, não apenas sobrevivendo.

Como a Joyce Fernandes se transformou na Preta Rara?
A minha mãe me chamava de Pretinha Rarinha porque na infância ela dizia que eu gostava de "coisas de menino". Ela falava que eu só queria brincar de bola, ou então, que todo mundo queria brincar de casinha enquanto eu ficava escrevendo. Sempre tive muito contato com livros e com a escrita. Ela dizia: "Essa pretinha é rarinha, ela é diferente". Em 2006, quando me tornei artista, transformei esse apelido em nome artístico.

Falando em transformação, como você sente que a sua relação com a beleza se transformou ao longo do tempo?
Hoje tenho uma relação bem melhor do que na adolescência. Na infância me incomodava o tamanho do nariz, porque na escola vinham com esse tom de racismo. Já na fase jovem era uma questão atrelada ao corpo também. Pensava: "Eu sou gorda, logo, não posso ser bonita". Tenho os lábios grossos, então não vou passar batom vermelho porque vai aumentá-los ainda mais.

Hoje, eu quero é ser vista, porque fiquei muito tempo invisível nessa sociedade. Cansei de ficar invisível.

O que é beleza para você?
Beleza, para mim, não está tão atrelada a estar sempre montada. Eu amo uma montação, maquiagem, batom, não saio sem cílios [postiços]. Mas beleza para mim transcende, está além do que a pessoa consegue ver ali. Beleza é você falar bom dia para o porteiro, conversar com as profissionais de limpeza e não tornar essas pessoas invisíveis.

Preta Rara  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Preta Rara
Imagem: Arquivo pessoal

Qual é a importância do seu cabelo para a sua beleza?
Meu cabelo faz parte da minha identidade. Gosto de provocar reflexões, então, adoro quando as pessoas olham e pensam "nossa, mas por que ela colocou esse batom cinza, azul, verde, por que está com o cabelo roxo?". Costumo dizer que meu cabelo natural é meu cabelo roxo. E falo que meu cabelo crespo é para cima porque ele cresce em direção a minha autoestima, para sempre lembrar que eu sou rainha e tenho um papel importante nessa sociedade, sim. Por mais que parte da sociedade queira me esconder, eu existo.

Hoje, uso e abuso das cores porque na adolescência eu só vestia roupas pretas. Ouvia da minha avó que o preto emagrecia. Logo, pensava "não posso usar cores, tenho que parecer bem mais magra".

E a sua relação com cabelo na infância e na adolescência, como era? Nessa fase ainda estamos nos entendendo no mundo e tentando aprender a como existir.
Foi complicado, porque eu tinha muitas amigas brancas e elas tinham cabelo liso. E todo mundo falava: "nossa, seu cabelo é lindo", enquanto o meu era o "cabelo duro", "cabelo de bombril'', "bucha". Só que tive a sorte de ter uma família muito presente. Toda vez que chegava chorando, minha mãe pegava o vinil da Alcione em que ela estava bonitona, de turbante, e falava: "Essa moça aqui passou pelas mesmas condições que você. Olha como ela é bonita, olha a unha dela, o cabelo. Você também pode ser ela".

Em que situações a beleza passa a ser uma forma de existência e resistência?
Isso é recente na minha vida. Foi a partir de 2016, 2017, quando criei um projeto chamado 'Ocupação GGG', onde convidamos mulheres gordas para irem à praia de biquíni. Na primeira edição, que aconteceu em Santos (SP), foi uma senhora de 65 anos que nunca tinha ido à praia de biquíni ou maiô porque tinha vergonha. O intuito era fazer uma roda de conversa e, no final, um ensaio fotográfico para mostrar o quanto eram bonitas. E elas nunca tinham se visto dessa forma. E nesse momento pensei "caraca, criei esse projeto mas nem eu sou bem resolvida comigo mesma" (risos).

Preta Rara cabelo azul - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Preta Rara cabelo azul
Imagem: Arquivo pessoal

E suas experiências com sexo, como é sua relação?
Até eu conseguir transar com a luz acesa foi um processo, porque eu sou gorda e tinha muita vergonha do meu corpo perante meu parceiro. Ficava com medo dos caras me verem toda montada e quando tirasse a roupa pensarem "nossa, achei que ela fosse menor". Eu tinha essa insegurança, mas conforme fui entendendo meu corpo e o meu lugar, comecei a falar "se eu me aceito e o cara está querendo ficar comigo, ele vai ter que me aceitar da forma que sou". Mas demorou. Primeiro um abajur na estante e depois a luz escancarada. Os caras queriam apagar a luz e eu pensava: "Não, quero com a luz acesa para ver tudo".

Isso tem total reflexo na maneira como você se relaciona com a sua sexualidade e com o seu prazer.
Tem muita gente que fica vendo vídeos pornográficos e quer agir da mesma forma. Só que você tem que respeitar as limitações do corpo do outro, tem algumas coisas que a pessoa quer fazer e não tem como. Sexo, para mim, tem sempre que empatar. Não dá para um chegar nos finalmentes e o outro não. E agora fica esse negócio de se contorcer toda, só o parceiro se satisfaz e você não. Você sai sem gozar e ainda com câimbra. Aí não!

Fabi Gomes recebe Preta Rara na 6ª Temporada do programa E aí, beleza? - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Preta Rara é a segunda convidada da nova temporada do programa "E aí, Beleza?"
Imagem: Mariana Pekin/UOL

Sua mãe era empregada doméstica e você já contou que começou a prestar atenção nesse trabalho aí. Como você abriu seu horizonte para entender que aqui tinha algo que precisava ser olhado?
Quando minha mãe era trabalhadora doméstica, eu nem imaginava o que ela passava. Comecei a entender quando fiz 18 anos, saí do ensino médio e ninguém me chamava para entrevistas de emprego. E acabei conseguindo trabalho como doméstica. Quando falei para minha mãe, ela começou a chorar e disse que eu não ia. Na primeira semana, entendi o porquê, era por conta dessas questões das relações não serem humanizadas no trabalho doméstico. Só fui entender o trabalho doméstico, quando comecei a trabalhar. Por exemplo: Por que ela me trata dessa forma? Por que ela fala que sou da família se não posso usar o banheiro da casa dela?

Mas não foi por escolha minha, foi por necessidade, era a única opção de trabalho, já que não me contratavam para ser vendedora na loja. Sempre pediam currículo com boa aparência. Eu mandava foto e a boa aparência não era aquilo que eles esperavam e queriam.

Você escreveu o livro "Eu, Empregada Doméstica: a Senzala Moderna é o Quartinho da Empregada", como foi esse processo?
Quando fiz um post escrevendo sobre meu último emprego como doméstica, dizendo minha patroa não me deixava me alimentar da comida que eu fazia e tinha que levar marmita e que logo depois fui demitida porque uma convidada dela viu e achou isso um absurdo, viralizou muito rápido. Resolvi. então, criar a página 'Eu, Empregada Doméstica' (@euempregadadomestica) para centralizar esses relatos. E,vi a necessidade de também colocar isso em livro, são relatos inéditos, além de trazer relatos da minha avó e da minha mãe para falar o quanto o trabalho doméstico é praticamente hereditário para as mulheres pretas.

E quando as mulheres começaram a sair para protestar sobre o direito do trabalho, não incluíam a doméstica. Estavam lá as mulheres não negras e não indígenas protestando, mas não eram pelos nossos direitos, eram pelos direitos delas. Quem estava limpando, cozinhando, eram nós, mulheres pretas.

******INTERNET OUT******* SÃO PAULO, SP, BRASIL, 12-07-2022, 10h: ?Fabi Gomes recebe Preta Rara na 6ª Temporada do programa E aí, beleza?.? (Foto: Mariana Pekin/UOL).  ATENCAO: PROIBIDO PUBLICAR SEM AUTORIZACAO DO UOL - Mariana Pekin - Mariana Pekin
Detalhe das unhas de Preta Rara
Imagem: Mariana Pekin

Pensa rápido:

Qual foi a maior audácia da sua vida?
Me mudar para Salvador.

Uma música para escutar pelo resto da vida?
"Magnólia", do Jorge Ben. Meu pai colocava o fone de ouvido na barriga da minha mãe com essa música, porque eu me revirava quando ele queria que alguém escutasse o bebê. Essa música mexe muito comigo, inclusive, tenho a flor de magnólia tatuada por isso.

Uma vontade sexual não realizada?
Transar com dois homens. A questão da heterossexualidade é uma construção social e eutambém fico nesse campo de me permitir conhecer outras pessoas, só que ainda não rolou de me interessar por outra mulher. Também se não me interessar vai ser tranquilo.

O que ninguém imagina sobre Preta Rara?
Que ela é muito fã do Chaves! Eu sou muito fã de Chaves e quando Roberto Bolaños faleceu parecia que era um avô meu. E gosto de alguns animes também.

O que você espera para o Brasil em 2022?
Depois de outubro de 2022, espero uma nova era de renovação, só que uma continuidade de um período que foi pausado e que foi bom.