Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Gênesis: Record transforma história de estupro em romance proibido
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A liberdade criativa e a licença poética são constantemente questionadas nas novelas bíblicas da Record. Esse debate é central nessas produções porque o livro sagrado tem um texto seco e repleto de figuras de linguagem, e isso pode abrir margem para diferentes interpretações sobre as histórias relatadas.
Gênesis não escapa dessas questões, e já escrevi algumas vezes nesta coluna sobre os conflitos entre público e autores da novela diante de importantes passagens da trama. Esse debate é parte de produções do tipo, mas há alguns limites.
Limites ultrapassados
Na última quinta-feira (26), Gênesis ultrapassou a linha do aceitável ao transformar uma uma história de estupro em um mero romance proibido por conta de conflitos culturais e religiosos.
O capítulo intitulado #AVergonhaDeDiná mostrou o envolvimento de Diná (Giovanna Coimbra), a única filha de Israel (Jacó), com o príncipe Siquém (Marcelo Filho). Havia grande expectativa por esse momento, já que ele é o ponto-chave para a chacina que ocorreu logo em seguida.
Na novela, Diná vai escondida para a cidade. Lá, conhece o príncipe e se deixa levar pela lábia do rapaz sedutor. Ele implora por um beijo e, quando ela cede, uma lágrima escorre de seu rosto. É dessa forma que Diná, mesmo dizendo não, transa com Siquém. Em nenhum momento a filha de Israel diz que a relação não foi consentida. O medo e a vergonha que ela sente são por ter feito algo não aceito na cultura de seu povo.
O que diz a Bíblia
No texto bíblico, a história é outra. Diná foi violentada por Siquém, ou seja, estuprada. Há diferenças nas traduções, mas ao analisar a forma como a história é contada, todas as versões levam à mesma conclusão. Muitos têm se apoiado na edição da Bíblia Almeida Corrigida Fiel, que diz que o príncipe "viu-a, e tomou-a, e deitou-se com ela, e humilhou-a". Porém, a palavra "tomar" é geralmente usada no sentido de "tomar à força".
Romantização do estupro
O maior problema na interpretação adotada pela novela não é a fuga da história bíblica, mas a romantização de um estupro. Afinal, Diná apenas deu abertura para um beijo. Na cena, ela diz "não" repetidas vezes para as investidas de Siquém. A relação sexual não foi exibida, só o momento posterior em que Diná se desespera e o príncipe pede desculpas a ela.
Após a cena, ficam alguns questionamentos. Se os dois desejaram e se deixaram levar pelo momento, por que o príncipe pede desculpas a ela tantas vezes? Se Diná não foi estuprada, por que foge de Siquém como se estivesse em perigo?
A confusão é ainda maior porque a novela nos leva a acreditar que Siquém agiu dessa forma por estar apaixonado por Diná, misturando amor e violência, além de romantizar o abuso sexual.
Esse momento lembra exatamente como ocorrem muitos estupros e presta um desserviço ao normalizar a situação. Não dá para colocar beijo e sexo no mesmo pacote. A autorização para ser beijada não é a mesma para o sexo. Essa confusão, inclusive, também serve como desculpa e justificativa para diversos casos de abuso sexual, além de fazer com que vítimas se calem por medo e vergonha.
Chance desperdiçada
Gênesis perdeu uma ótima oportunidade de conversar com o seu público sobre violência sexual por meio da novela. É claro que o papel principal da produção, ainda que bíblica, é o entretenimento, mas isso não a impede de dialogar com temas importantes da sociedade.
No final, a sensação que fica é que nesse caso a Record optou por pregar uma única mensagem: a de que a desobediência a Deus e à família podem trazer sérias consequências. Que triste, o público de Gênesis merecia mais.
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