"Mank" não aprendeu as lições de "Cidadão Kane" (e um "Até breve!")
Resumo da notícia
- "Mank", de David Fincher (Netflix) conta a história de Herman J. Mankiewicz, um dos roteiristas do clássico "Cidadão Kane"
Antes de falar de "Mank", novo filme de David Fincher ("A Rede Social", "Clube da Luta"), que acaba de estrear na Netflix, precisamos falar sobre "Cidadão Kane", o filme que é a verdadeira razão de "Mank" existir.
Dirigido em 1941 por Orson Welles, então com 26 anos, "Cidadão Kane" é um dos maiores e mais influentes filmes da história do cinema. Se ainda não viu, recomendo que assista o mais rápido possível.
"Kane" revolucionou a estética e a narrativa do cinema. Sua fotografia, iluminação, montagem e uso de som foram inovadores e geniais. Mas o que vem fascinando cinéfilos e estudiosos, mais do que qualquer façanha técnica, é o roteiro do filme.
"Kane" é o que os franceses chamam de "roman à clef", uma história ficcionalizada, mas inspirada por acontecimentos e pessoas reais. E não é nenhum segredo - já não era em 1941 - que o personagem de Charles Foster Kane foi moldado no poderoso magnata William Randolph Hearst (1863-1951).
O "roman à clef" não era uma técnica nova, tendo sido amplamente utilizada na literatura muito antes de "Kane". A novidade no roteiro do filme, mais que misturar fato e ficção, era sua estrutura narrativa, que misturava "falso documentário", longas sequências de montagens - algumas lembrando videoclipes musicais - e, por fim, sequências lúdicas e fantasiosas, que remetiam ao cinema Expressionista alemão dos anos 1920 e 1930.
O filme é narrado em dois tempos - começa quando Kane morre, e depois retrocede no tempo para contar sua vida, mas sempre intercalando a saga do personagem com o presente e a busca de um repórter por descobrir o segredo de "Rosebud", a misteriosa palavra que Kane teria dito antes de morrer.
Desde que foi lançado, "Cidadão Kane" suscitou polêmicas. Hearst fez de tudo para afundar o filme, que só foi salvo devido a críticas entusiasmadas. Indicado a nove Oscar, ganhou apenas um, e logo o do melhor roteiro, assinado por Herman J. Mankiewicz e Orson Welles.
Nas décadas após o lançamento de "Kane", enquanto o filme ganhava a popularidade que não tivera em sua estreia, críticos e pesquisadores começaram uma discussão acalorada: quem, afinal, havia sido o "autor" do roteiro?
Em 1971, a famosa crítica Pauline Kael escreveu, na revista "The New Yorker", o ensaio "Raising Kane", em que afirmava que o verdadeiro gênio criativo por trás do filme não era Welles, mas Mankiewicz. No ano seguinte, o cineasta Peter Bogdanovich, amigo pessoal e fã de Welles, rebateu ponto a ponto os argumentos de Kael num artigo chamado "The Kane Mutiny".
Hoje, quase meio século depois da briga Kael vs. Bogdanovich, e depois que muitos documentos e arquivos surgiram, é ponto pacífico entre pesquisadores que Kane foi uma obra coletiva (para quem quiser se aprofundar no tema, sugiro o livro "Cidadão Kane: o Making Of", do pesquisador norte-americano Robert L. Carringer, lançado no Brasil no fim dos anos 1990 - aqui, uma entrevista com o autor).
E finalmente chegamos a "Mank", de David Fincher. O filme toma o lado de Mankiewicz (Gary Oldman) e defende a tese de que foi ele, e não Orson Welles, que verdadeiramente "criou" a obra.
Isolado em uma casa de campo, depois de um acidente de carro no qual quebrara uma perna, vemos Mank, sozinho, ditando o roteiro para uma assistente. Welles aparece de vez em quando, mas não participa ativamente da criação de nada (ou assim Fincher faz parecer).
Sou totalmente a favor da liberdade criativa de Fincher. Se ele quiser dizer que Tiririca fez o roteiro de "Cidadão Kane", tem esse direito. Mas, por favor, que o faça com um filme menos frio e superficial que esse "Mank".
O cineasta e roteirista Paul Schrader, em sua conta de Facebook, escreveu: "'Mank falha na primeira obrigação de um filme sobre um protagonista cheio de falhas: convencer o espectador de que aquela pessoa merece duas horas de seu tempo". E o Herman J. Mankiewicz interpretado por Gary Oldman começou a me entediar depois de cinco minutos. Com dez minutos de filme, eu já queria distância do sujeito.
Segundo relatos da época, Herman J. Mankiewicz era um bêbado inoportuno e insensível, que terminava toda frase com uma tirada genial e perdia o amigo, mas não perdia a piada. Mas esses não são os problemas do personagem vivido por Gary Oldman. Quantos bêbados inoportunos já não nos fizeram rir ou chorar num cinema? O problema do personagem é que ele é desinteressante, e isso é imperdoável.
"Cidadão Kane" tem um personagem cheio de falhas - arrogante, autoritário, insensível, manipulador e brutal - mas absolutamente cativante.
A impressão, ao ver "Mank", é que Fincher passou tanto tempo preocupado em recriar a estética de "Cidadão Kane" e dos anos 1940, que se esqueceu de cuidar da qualidade do roteiro de seu próprio filme (escrito por seu pai, Jack Fincher, morto em 2003).
"Mank" é tão bonito quanto vazio. Em nenhum momento conseguimos nos conectar com Mankiewicz ou com nenhum outro personagem, porque todos são arquétipos. Os diálogos, exageradamente "espertos" e irônicos, aumentam ainda mais o abismo entre o filme e o espectador. Todo mundo é tão genial, tão engraçado, tão mordaz, que o humor desaparece, soterrado em montanhas de ironia.
"Mank" deixa questões sem resposta: por que Mankiewicz, que por contrato não deveria ter crédito no filme, exigiu assinar o roteiro? Por que Mank decidiu partir para a guerra contra o poderoso Hearst, de quem era amigo? Por que humilhou, no roteiro, outra amiga, Marion Davies, amante de Hearst? Como foi a briga de Mank e Welles pelos créditos de "Cidadão Kane"?
São questões que, diferentemente do mistério de "Rosebud" em "Kane", permanecem sem conclusão em "Mank".
UM ATÉ BREVE A TODOS!
Com esse texto, me despeço dessa coluna. Agradeço ao UOL pela oportunidade de escrever nesse espaço nobre. No início de 2021, levo a coluna para outro destino.
Muito obrigado aos leitores que me acompanharam aqui. Nos vemos em breve.
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