Selo Narrativas Periféricas é um respiro para o mercado brasileiro de HQs
Essa semana finalizei a leitura do box lançado pelo projeto Narrativas Periféricas, realizado pela Editora Mino, cuja divulgação a gente apoiou no Perifacon. Através de um edital, foram selecionados artistas de periferias para receberem aulas de influentes nomes no mercado de quadrinhos do país. No fim, como resultado desse intensivão, os selecionados tiveram suas obras inéditas publicadas
Vamos para o que interessa: o review das obras!
Comecei por Crianças Selvagens", do artista Gabriel Brito, que se apresenta como Gabú. A HQ conta a história do protagonista Ariel, que foge de o lar abusivo e se junta a outras crianças em situação de rua, vivenciando a extrema desigualdade, totalmente marginalizadas.
Encerrei a HQ em lágrimas com tamanha sensibilidade para contar a história de crianças que, apesar de viverem uma realidade dura, não perderam a ternura e não desistiram de ser crianças. Como numa versão moderna de "Capitães de Areia", de Jorge Amado.
Essas crianças são retratadas com asas que as deixam com a aparência de pássaros —num gesto muito delicado. Depois de ler, fui escutar a música "Passarinhos", do Emicida, para brindar à genialidade de artistas que, como Gabú, conseguem transparecer a realidade dura de forma inovadora e sensível.
"Para Todos os Tipos de Vermes" me chamou atenção pela premissa escolhida pela artista soteropolitana Kyone Ayo: tudo acontece dentro de um verme no fundo do oceano, representando o sistema de classes.
Achei corajosa a disposição da artista em trabalhar esse sistema, mostrando pessoas que normalizam o fato de estarem apodrecendo por dentro, com partes de órgãos internos expostos (calma leitor, não é nada assustador).
Outra coisa que chama atenção é a temática pós-apocalíptica, com uma apresentação digna de filme de ficção científica sendo trabalhada não só no cenário, mas também nas falas dos personagens. Eles tentam lidar com seus dramas pessoais, enquanto descobrem segredos sobre como a sociedade onde eles viviam desmoronou em tão pouco tempo.
Kyone achou um jeito bem legal para discutir desigualdade social com ficção científica.
"Thomas: La Vie en Rose", do artista Arthur, que assina como Pigs e cresceu na quebrada do Elisa Maria, traz a história de Thomas, um cara que trabalha num call center e está totalmente desanimado com a vida. Essa HQ me surpreendeu muito: de cara, parecia uma história completamente despretensiosa, principalmente pelos traços que o artista decidiu usar para contar a história.
A escolha, porém, se mostrou um ótimo jeito de tocar em assuntos pesados como suicídio e abuso sexual. A identificação com Thomas é rápida, quando se entende que o personagem está totalmente preso num emprego "merda", ouvindo broncas desnecessárias, aturando clientes insuportáveis e tentando sair de uma fossa amorosa.
E mesmo assim é tudo muito engraçado, com até mesmo uma quebra irreverente da quarta parede. Talvez por isso, achei que ia terminar a HQ dando risadas com os personagens, mas fui surpreendida pelo final que me acertou como um soco no estômago e me senti surpreendentemente tocada. Sinto que Arthur conseguiu passar através do humor uma mensagem muito importante sem perder a irreverência.
Em "Pomo", Eryk Souza usa ficção científica e um cenário distópico para falar de um assunto que, diga-se de passagem, está mais para presente mesmo. Numa história que é também sobre alienação religiosa e seus dogmas, o personagem resgata uma espécie de alienígena andrógina.
E assim ele passa a questionar sua existência, toda a situação vivida naquela realidade, o fanatismo das pessoas da cidade e até as partes que mostram uma espécie de culto religioso misturado com autoridades da política. Tudo isso contribui para a construção de universo muito complexo. Os detalhes nas casas e até na alimentação me chamaram bastante atenção.
Não quero dar spoilers, mas achei muito intrigante a escolha do autor ao dizer que não passou pela escolha religiosa ser desenhado e apresentado de forma diferente, no caso não robotizada. Terminei com vontade de experimentar ainda mais desse universo, para ser sincera.
"SHIN", de Isaac Santos, se passa numa metrópole futurista, e conta a história de um shinobi, mais conhecido como ninja em nossa cultura. Numa HQ carregada de referências à cultura oriental, Isaac narra a história de um personagem com um emprego bastante complexo, uma espécie de assassino de aluguel, que precisa cuidar da filha por ser pai solteiro.
Além dos traços instigantes, a aposta de Isaac de colocar um personagem negro neste universo é muito acertada. Afinal, um ninja negro é algo que não se vê todo dia. As cenas de ação são muito legais também, bem como as demonstrações de afeto entre o pai e a filha. Tudo embalado por um universo muito instigante.
"Quando a Música Acabar", de Isaque Sagara, vai te prender do começo ao fim. O autor voltou para os anos 1990 pra contar a história de jovens periféricos que decidiram comemorar um aniversário com uma festa. A HQ já começa com uma notícia nada boa para uma das personagens, o que te faz ficar totalmente envolvido.
Para ambientar a história, Isaque trouxe detalhes e referências seja nos desenhos do cenário ou nas falas dos personagens. Além disso, mostra como algumas questões afetam a vida dos envolvidos, como uma tragédia familiar e o uso descontrolado de drogas como um escapismo. E assim os personagens lidam com suas pequenas tragédias pessoais para no fim tudo se desenrolar de forma rápida e chocante.
Todas as seis histórias possuem rumos, narrativas e história totalmente distintas. Não preciso nem falar do visual adotado por cada um, com referências estéticas variadas. Isso ensina uma valiosa lição: a periferia é complexa e diversa, e que cada "serumaninho", além de complexo, tem sua própria subjetividade.
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