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Arte Fora do Museu

REPORTAGEM

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Grafiteiro leva arte à comunidade do Jacarezinho após a chacina

Artista Célio no Jacarezinho - Divulgação
Artista Célio no Jacarezinho Imagem: Divulgação

Felipe Lavignatti

Colunista do UOL

18/06/2021 12h17Atualizada em 18/06/2021 15h50

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Resumo da notícia

  • Célio levou grupo de artistas para pintar nos locais da chacina
  • Grafiteiro se deparou com cenários de guerra no Rio de Janeiro

Foram 29 pessoas mortas pela polícia em uma ação que deixou marcas nas paredes e na memória de seus moradores. Para tentar atenuar a violência e as cicatrizes deixadas pela ação policial, o artista Célio levou seu projeto para a comunidade. Responsável pelo projeto Volta à Escola, o artista paulista resolveu ir para o Rio após ver o notíciário. Em uma conversa com o Arte Fora do Museu, Célio conta como foi levar sua arte para um lugar que passou (e ainda passa) por um cotidiano de violência.

Célio pintando parede no Jacarezinho - Divulgação - Divulgação
Célio pintando parede no Jacarezinho
Imagem: Divulgação

Como foi que você acabou pintando as paredes do Jacarezinho?

Eu tava indo pro Rio pra pintar no Leblon e eu tava já de mala pronta quando eu vi no noticiário o que aconteceu no Jacarezinho. Dois meses antes a gente tinha pintado uma escola no Manguinhos. Então você tem o Jacaré, o Jacarezinho, o Manguinhos e você tem o Mandela, né? São todas comunidades ali da Zona Norte, uma do lado da outra. E eu tinha alunos da escola que eu pintei que moravam no Jacarezinho. Eu eu fiquei amigo da galera ali e eu conheço uma galera que faz todo um trabalho de assistência social. Eu liguei pra eles e falei: "cara, eu vi na televisão, tá tudo bem aí?" E conversamos. Eles falaram: "cara, tá feio aqui, né? Muito, muito sangue, muito furo nas paredes". Aí eu falei: "ó, eu tô indo pro Rio, vou ficar uns uns dez dias aí, eu posso pintar um mural, ver uma parede bem grande que eu vou pintar um mural aí". Ele me sugeriu levar um monte de artista, cada um pegaria um espaço e pintaria.

Foi quando eu comecei esse movimento daqui de São Paulo, de ligar e contatar vários artistas lá do Rio, pra gente entrar dentro da comunidade e pintar o máximo possível de parede que foi furada, devolver a autoestima do do morador da comunidade. Tava todo mundo muito triste com o que aconteceu. E foi quando eu cheguei lá e me deparei com um cenário de guerra. Eu cheguei antes de fazer uma semana da chacina. Eu vi várias faixas ainda, da galera em luto. Conversei com a mãe que perdeu o filho. Enfim, são coisas bem tenebrosas aqui que eu não quero entrar no mérito. Prefiro falar mais dessa parte da ação. A gente foi tampar algumas paredes, que estavam muito furadas. Veio o financiamento de muita gente bacana e conseguimos comprar tinta, comprar spray, alimentação. Eu, junto com a galera do laboratório do Jacarezinho, conseguimos fazer esse movimento e levamos trinta grafiteiros pra dentro da comunidade e pintamos trinta painéis de arte. Um deles é o meu, que eu pintei do lado da associação de moradores. A parede tinha mais de trinta furos. Assim, de balas de fuzil. Fiz a base, fiz o trabalho, galera ficou feliz, galera agradeceu. Dá pra gente enxergar como que a arte transforma, né? E como isso muda o ambiente, só de a gente devolver cor, porque o negócio estava muito muito monocromático, sabe?

Uma das coisas mais loucas que aconteceu foi que passaram dois meninos com fuzil. Os meninos deviam ter vinte anos. Um deles botou um fuzil na parede e falou assim: "qual é Paulista? Deixa eu apertar o spray?" Aí deixei ele ficar apertando o spray e por um momento eu fiquei olhando o rosto dele. Aquele rosto fechado. Aí eu vi ele já abrindo o rosto e pintando feliz, cara. Eu sentei, comecei a refletir, porque eles vivem aquilo ali de um jeito que pra eles não tem outra opção. De repente, os caras olharam e viram uma outra alternativa. Eles não podem sair dali, eles não saem comigo. Antes de chegar no Jacarezinho, eu conversei com o gerente do morro pra pedir autorização pra entrar. E o que eles falam é que eles não saem de lá, eles vivem ali dentro. Então tem tudo, se ele precisar comprar alguma coisa lá fora, alguém vai lá, compra e traz pra eles. Porque, se eles saem, a polícia sequestra e pede resgate. Então, eles vivem lá dentro. E aí eu vi por um momento aquele menino deixar o fuzil dele do lado e pintar e ficar pintando mó tempão comigo lá. Mó tempão, depois ele disse que tinha que ir, agradeceu e foi embora.

Parede no Jacarezinho com pintura de Célio - Divulgação - Divulgação
Parede no Jacarezinho com pintura de Célio
Imagem: Divulgação

Eu vi um ser humano ali que, infelizmente, era vítima de um sistema gigante. Mas eu vi que a arte proporcionou um outro momento. Que o futuro dessas crianças seja um outro. Quem eles têm como herói lá dentro são os meninos com fuzil. Agora eu quero que eles tenham como herói os artistas. Que vieram aqui, repaginaram o ambiente. Trouxe uma perspectiva diferente e agora eu tô recebendo vários outros convites pra ir em outros morros pintar. Enquanto eu tiver força e tiver disposição, eu vou estar fazendo esse tipo de movimento, não só nas escolas, como também nos muro da periferia.

Eu imagino o poder de transformação através da arte diante de todo o cenário de violência que essas pessoas têm. E acho que você deve se sentir super gratificado de saber que seu trabalho esta afetando a vida dessa forma, né? E você viu isso?

Exatamente, cara. Eu entro em qualquer morro do Rio de Janeiro. Nunca aconteceu nada comigo. Esse do Chapadão que eu entrei foi o que eu mais senti medo, porque eu nunca tinha visto visto bazuca, granada. Nunca tinha visto isso na minha vida. E eu entrei num beco que tinha um monte. Eu senti aquele medo na hora, mas me contive ali. Entrei, fiz o meu trabalho, quando eu saí, todo mundo me agradecia. Eu vi que eu podia voltar. Eu tenho medo de fato lá é da polícia. Eu não tenho medo da galera aqui porque eu já sofri repressão policial no Rio de Janeiro quando eu saí do Jacarezinho. A galera me pegou numa esquina, quiseram me extorquir. Mas é muito doido, porque eles me veem como alguém que está indo lá pra pra ajudar. Eu num não tô indo lá derramar sangue. Tô indo lá pra levar cor e eles tem uma preocupação com as crianças. Então você tá indo pintar uma escola, indo pintar uma parede. Eles falam que não querem que as crianças entrem no mesmo destino, sabe? Eu entro em qualquer morro do Rio de Janeiro, minha mãe fica com medo, meu pai fica com medo. Mas é isso, é essa a realidade. Sendo que as pessoas falam disso sem conhecer e sem saber a realidade. Todo mundo tava ali, eu eu sei que também morreu um policial e sei que a família desse policial também sofre. Eu sei que esse policial também é uma vítima de tudo isso. Eu não tô defendendo um lado ou outro. A arte tem esse poder de de transformar os dois lados, sabe? De mostrar que existe outro caminho que não seja esse caminho do ódio. Tem um caminho, que é um caminho diferente. E eu me vi artista e me vi fazendo esse tipo de coisa e tendo essa liberdade de conversar, entender esse universo. Me perguntaram sobre realização, e é isso. Acho que como artista, hoje, não é pintar nos nos lugares com glamour. Eu já pintei em vários lugares assim, mas quando eu entro num lugar desses eu vejo um cenário de guerra. Tem um lugar no no complexo da Maré que se chama Faixa de Gaza que é um lugar destruído por conta de guerra. Você vai lá e pinta um painel e a galera respeita, entende, se sensibiliza. Pra mim é isso. Arte pra mim é isso e o resto é vaidade.

Para ver mais obras do Célio visite Arte Fora do Museu.