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Reportagem

O arquiteto autodidata que revolucionou São Paulo ganha exposição

São Paulo é terra de arranha-céu, como bem resumiu Mano Brown. Ao pensarmos nesses prédios, presume-se o cinza tão associado à cidade. No entanto, um arquiteto autodidata mudou essa lugar comum. João Artacho Jurado, responsável por alguns dos mais icônicos e coloridos prédios da cidade, está com seu acervo em exposição no Itaú Cultural.

A Ocupação Artacho Jurado reúne cerca de 130 peças, entre imagens, fotografias, vídeos, desenhos originais, publicidade de época, uma maquete imensa com as principais obras dele e o acervo pessoal da família Jurado. Conversamos com a curadora dessa seleção, a arquiteta e pesquisadora Jéssica Varrichio, para falar sobre o que tornou tão único e ainda impactante o trabalho de Jurado.

Como é retratar em uma exposição um arquiteto tão peculiar quanto o Artacho, alguém que não era arquiteto de formação mas conseguiu marcar a arquitetura da cidade de São Paulo com prédios tão icônicos?

A primeira coisa que eu acho que a gente tem que pensar é essa fixação em sublinhar que o Artacho é um não arquiteto. Aparece isso muito por causa da crítica da arquitetura paulista do século passado, dos anos 50. Um modernismo tão forte como aconteceu em São Paulo tem vários arquitetos que não são formados em arquitetura e isso não vem em sublinhado tão forte como o Artacho. Então, um dos aspectos da exposição é olhar para esse sublinhado, esse não arquiteto, esse não, essa negativa e positivar o Artacho como um criador, como um artista. Esse é o foco principal para a gente olhar o Artacho nessa peculiaridade do seu desenho, das suas cores e das minúcias que existiam em cada projeto. A exposição é bem focada no desenho do Artacho. Cada prédio mudava a configuração dos elementos. O núcleo principal dessa exposição, dessa ocupação, se chama Gramática do Artacho, em que a gente escolheu alguns projetos dele, por exemplo o Piauí, o Edifício Louvre, o Parque das Hortênsias, e a gente analisa cada elemento desses prédios. Como é o logo desse prédio, os lustres, a paleta de cores, porque tudo era muito específico do projeto. Tudo faz parte de uma estética geral do Artacho, mas cada projeto tinha o seu detalhe específico. Era nisso que a gente está focado, em fazer uma leitura do Artacho como um artista criador na cidade e é por essa via que a gente entrou para fazer a curadoria dessa exposição.

Seus prédios sofreram com críticas e hoje são tidos como os mais elegantes da cidade. Como se deu essa redenção do seu legado na arquitetura brasileira?

Primeiro de tudo, não tem como ficar ileso diante da arquitetura do Artacho. Acho que não é uma arquitetura que dá pra passar batido. Falando da minha experiência com a estética do Artacho, quando eu cheguei em São Paulo e eu nem conhecia muito essa figura, eu lembro que foi um impacto ver. O primeiro que eu acho que vi foi o Louvre. É algo meio monumental, maximalista. Eu acho que é uma experiência estética muito radical, então ou você ama ou você odeia, mas não é um tipo de arquitetura que dá pra passar batido e que você esquece. Essas cores, essas formas meio nave espacial, meio futurista causam um impacto. Eu acho que isso gera muitas opiniões sobre gostar ou não e como o Brasil tem essa relação muito peculiar com arquitetura e esse movimento modernista capitaneado pelo Le Corbusier em Paris. Isso se traduz no Niemeyer em São Paulo e no Brasil. O Copan e o Louvre são construídos ao mesmo tempo. Essas duas formas, esses dois modos de construir, esses dois pensamentos super diferentes, paralelos, crescendo na cidade. Tem essa tradição da arquitetura paulista muito forte, muito pautada pelo brutalismo, pelo concreto, pelo modernismo, pelas linhas mais limpas. O Artacho é muito criticado porque ele é um pós-moderno antes do pós-modernismo. A revisão da obra do Artacho começa mais ou menos nos anos 80. Tem um livro fundamental que muda a relação com que a arquitetura é estudada, que se chama Aprendendo com Las Vegas, da Denise Scott Brown e do Robert Venturi, que eles analisam Las Vegas, que era um assunto assim impensável na arquitetura. Esses dois colocarem no mapa esse tipo de arquitetura, uma arquitetura mais da comunicação, que também se conecta com a questão publicitária do Artacho. É uma arquitetura mais da comunicação e não da forma, acho que isso ajuda a colocar o Artacho nas rodas de arquitetura e no sentido de que o Artacho não está, não é estudado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, por exemplo, mas tem vários arquitetos dali que moram em apartamentos do Artacho e amam. Acho que essa entrada do pós-modernismo na academia ajuda e eu acho que os prédios, para além disso, realmente são prédios que tiveram seu sucesso comercial. São prédios generosos, são prédios que pensam o espaço, o convívio social e também tem todo um charme, que é quando alguém coloca toda a sua paixão e a sua intenção em um arquiteto. Para ele, o azulejo do banheiro era uma das coisas mais importantes do mundo. De novo, um exemplo do Louvre, cada banheiro tem uma combinação de cor distinta, verde e rosa, verde e branco, enfim, e aí vai. Então, é meio por aí que se dá essa redenção e esse interesse, que ainda é muito pouco, é bem pouco na academia, mas que começa a aparecer.

Edifício Bretagne, na avenida Higienópolis, em São Paulo (SP). Projetado pelo arquiteto João Artacho Jurado, foi inauturado em 1958 (24/10/2006)
Edifício Bretagne, na avenida Higienópolis, em São Paulo (SP). Projetado pelo arquiteto João Artacho Jurado, foi inauturado em 1958 (24/10/2006) Imagem: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress

Tem uma história que o edificio Bretagne foi o primeiro da avenida Higienópolis a ter garagem, já pensando em uma cidade que crescia e despertando o interesse dos prédios vizinhos, que alugavam as vagas dali. Quais outras inovações foram trazidas pelo arquiteto nessa época de transformação da cidade?

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Acho que essa história Artacho e carro começa no primeiro projeto da construtora dele com o Aurélio, irmão dele, as Monções, e é um projeto que se chama Cidade de Monções, que eles construíram um conjunto de casas, um condomínio de casas no Brooklin Novo, e era meio impensável morar para aqueles lados. Era muito longe e na escritura da casa vinha um carro e uma linha telefônica, que é para quem está morando no Brooklin Novo nos anos 50 em São Paulo se sentir conectado com a cidade de alguma forma, seja podendo se locomover do Brooklin Novo dentro com o carro que ele adquiriu junto com a casa ou com o telefone. Não era comum ter uma linha telefônica, muito menos uma construtora te propondo esse tipo de negócio. Acho que importante para ele era comodidade e conforto, como fazer com que fosse um prazer mesmo morar no espaço que ele criou. Acho que também tem alguém que entendeu que o carro faria parte da lógica da cidade. Também tem uma anedota sobre a escada rolante do Louvre. Na época existiam duas escadas rolantes em São Paulo, que era a da Fundação Bienal, no prédio do Niemeyer, e a do Louvre. E é engraçado porque não precisa ter escada rolante no Louvre, porque não tem um fluxo gigantesco de pessoas, não são muitas escadas que você tem que subir se você precisa subir para o Mezanino. E a escada rolante está muito perto da escada fixa, então é uma demonstração de tecnologia. Eu vou proporcionar para vocês uma escada rolante, então tem essa ideia de inovação o tempo inteiro.

Além de desenhar ele também sabia vender suas criações. Como esse lado publicitário dele ajudou na consolidação da sua obra na cidade?

As propagandas que as Monções produzia eram as propagandas com a maior autoestima da cidade. Vários slogans são bem extravagantes. Ele descreve o Louvre como o máximo do máximo, ou perfeição máxima, como uma obra de arte mesmo. Mesmo que não fosse sucesso de crítica, a arquitetura dele já causava um frisson em determinada classe. E ele também sabia agitar esses espaços. As aberturas dos prédios eram grandes eventos. Isso começa com o começo da carreira dele. Ele vem das feiras industriais, que é um evento, uma celebração, tem corte da fita, tem desfile. Essa tradição fica para criar um evento celebrativo. Um padre ia benzer, famosos iam aparecer, lá tinha o livro de ouro do prédio para as pessoas assinarem. E os materiais gráficos que ele fazia eram impecáveis. Tem alguns prédios dele que ele anunciou: não é mais possível morar aqui. Nem tinha terminado ainda o prédio, não tinha nenhum tipo de publicidade e já tinha vendido todos. Ele é um criador de desejo e um criador de um estilo de vida.

Grande parte de suas criações estão em São Paulo, mas a exposição também mostra seu trabalho fora da cidade?

As duas cidades em que ele trabalhou são São Paulo e Santos. A gente não fez uma cronologia clássica plotada na parede, como geralmente acontece em exposições, especialmente em exposições retrospectivas, em exposições homenageando a obra de alguém. A gente resolveu fazer uma maquete com a topografia de São Paulo, especificamente da Avenida Paulista, que é onde está o Saint Honoré, um dos prédios do Artacho, até o Centro de Higienópolis. Essa maquete funciona como cronologia da exposição. Em uma das pontas da maquete tem meio uma entrada assim do mar e com os projetos dele em São Paulo e em Santos, que são dois, o Enseada e o Verde Mar. Essas obras são apresentadas primeiro na exposição no seu conjunto, a cidade de São Paulo e Santos que acaba sendo uma ilhinha ali nessa maquete. E essa maquete funciona, ela acende por dentro os prédios, tem um video-mapping em cima, dando informações do prédio, em que ano foi construído e enfim, algumas informações técnicas. Aí você vai entendendo essa cronologia e como esses prédios foram criando essa linha narrativa estética do Artacho. Dentro da exposição, a gente chama de uma exposição dentro da exposição, que tem uma parede que é do Hans Gunter Flieg, um fotógrafo que mora no Brasil há muito tempo, mas é alemão. Ele fotografou muito o desenvolvimento industrial do Brasil, e esse lado publicitário do Artacho também é revelado nessa relação com o Flieg, que era um dos grandes fotógrafos do momento. Ele contratou o Flieg para fazer uma uma sessão de fotos no Verde Mar, que é um prédio em Santos. Tem um ensaio com modelos posando como é viver nesse prédio.

O arquiteto Artacho Jurado corta bolo no formato do Edifício Viadutos
O arquiteto Artacho Jurado corta bolo no formato do Edifício Viadutos Imagem: Acervo Família Jurado

A exposição mostra também o lado pessoal de Artacho? Podemos conhecer mais do que suas obras nessa mostra?

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Eu acho que o Artacho é um dos artistas, arquitetos, mais enigmáticos da construção civil. Não tem muito material sobre ele, não tem anotações pessoais. É muito difícil achar a voz pessoal do Artacho. Não tem entrevista, é raro. Então acho que as pistas da vida pessoal do Artacho começam na entrada da exposição. Ele era apaixonado por ópera, ele assinava o programa do teatro municipal. Acho que ópera é uma das grandes influências para o trabalho dele. O que a gente fez na entrada da exposição é unir dois elementos cruciais para o Artacho, que é essa paixão da ópera. Nessa sala, antes de entrar na exposição, de fato, tem uma caixa focalizada tocando ininterruptamente as três óperas favoritas dele. A ideia de confronto dele era que você pudesse sentar na poltrona da sua casa e você tinha uma janela generosa o suficiente para você poder admirar a cidade. A mesa dele de trabalho era sempre em relação a uma janela. E a mitologia ao redor do Artacho conta que ele sentava na mesa dele e ele era uma pessoa noturna. À noite, com o charuto dele, com uma caixa bem alta, olhando essa janela e desenhando os prédios. Eu acho que tem essa relação bem íntima, sensorial, sonora que o visitante tem quando ele entra na exposição. É quase, como a caixa é focalizada, é quase como se fosse um sussurro, quase um segredo dessa paixão do Artacho compartilhar esse segredo com o visitante. E logo do lado do texto institucional tem uma imagem que eu acho que é a grande síntese da personalidade dele. Ele pediu para fazer um bolo com o formato do edifício Viadutos. Tem esse aspecto da celebração e de incorporar e deglutir a crítica. O Artacho é alguém com muita ousadia; O Brasil é um país que tem um grande panteão da arquitetura, de uma escola muito específica e ele enfrentou todos eles. Várias críticas eram que ele era o modernismo com chantilly. E o que ele faz é de fato um prédio de chantilly. Ele deu o nome de um dos prédios de Cinderela, que é viver esse sonho dessa princesa, dessa disneylândia do chantilly. Ele era um apaixonado pelo Niemeyer. Ele é tão pós moderno que ele citou a Pampulha no terraço do Parque das Hortênsias. Tem uma pampulinha no terraço. Era alguém que ia meio deglutindo e reinventando. Essa foto é bem específica. Eu acho que essa foto contava muito da personalidade do Artacho, e eu acho que o núcleo Hollywood da exposição também traz esse lado dele, de como ele se relacionava com o espaço que ele estava. Acho que esses são os aspectos mais pessoais que a gente tem nessa exposição. O nosso grande objetivo da ocupação é deixar claro que o Artacho é especial, porque o desenho está no coração da obra dele, e é alguém muito, muito apaixonado e que trouxe essa ideia de artesania para a construção civil. Ele tinha parcerias com o Liceu de Artes e Oficios para desenhar janelas de um tamanho que não existia no mercado, por exemplo. Isso era produzido sob medida em uma escala industrial. Ele rearranjou a indústria com os prédios dele, seja via mais artística, Liceus de Artes e Oficios, seja trabalhando junto com a Celite para criar uma paleta de cores que só existia para ele. As louças da pia da banheira não existiam naquelas cores, ele que pediu. É colocar o Artacho como uma experiência estética radical na cidade de São Paulo.

SERVIÇO
Ocupação Artacho Jurado
Visitação: até 15 de setembro
Itaú Cultural, Avenida Paulista, 149, Sala Multiuso - 2º piso
Concepção e curadoria:
Guilherme Giufrida, Jéssica Varrichio e Itaú Cultural
Visitação:
Terça-feira a sábado, das 11h às 20h; domingos e feriados, das 11h às 19h.
Entrada gratuita

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