Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Como o Twitter fez nascer um suposto serial killer de homossexuais
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Desde o começo desta semana, quem usa o Twitter tem sido impactado por mensagens dando conta de quem um serial killer de homossexuais está à solta em São Paulo. De início, mensagens davam conta de que já haveria cinco vítimas. Na última quinta-feira (10), surgiram relatos de o número de casos chegaria a 11. Todos foram motivados pela morte de Wellington Cardoso, de 25 anos, encontrado por um amigo em seu apartamento, no bairro de Pinheiros, em circunstâncias suspeitas.
Well, como era conhecido por todos, havia avisado aos amigos que teria um compromisso importante na quarta-feira de cinzas, após ter ido a algumas festas. Foi encontrado morto, com um pano e um cabo de carregador amarrados ao pescoço, sacos plásticos na cabeça. Segundo policiais presentes na cena, haveria sangue perto da cabeça, uma camisinha aberta ao lado do corpo, um pó branco em sua barriga. Ele vestia um terno ainda com etiqueta. Há, sim, indícios de que ele pode ter sido vítima de um homicídio. O caso foi registrado pelo 14º DP de Pinheiros, com Boletim de Ocorrência de número 1395/2022, no dia 3 de março.
A morte de Well lembrou a do ator Luiz Carlos Araújo, da novela "Carinha de Anjo", do SBT. O rapaz, de 42 anos, foi encontrado em 11 de setembro, em seu apartamento, já em estado de decomposição. Um saco plástico também estava envolto em sua cabeça. Segundo laudo da necrópsia, a causa teria sido asfixia acidental. Imagens de câmeras não mostraram ninguém pulando de sua janela nos dias seguintes ao crime e as portas estavam trancadas por dentro.
Um terceiro caso de asfixia surgiu, em 17 de setembro. Um gerente de lojas de 39 anos, foi encontrado morto em um hotel. Ele já havia tentado suicídio outras vezes e enfrentava um momento difícil na vida. Se declarava heterossexual, tinha filho e havia brigado com a namorada. Segundo policiais, havia gás no quarto.
Entre estes três casos, não há nada que indique que : 1) eles tenham usado algum tipo de aplicativo de relacionamento antes de suas mortes (no Twitter popularizou-se a expressão "serial killer do Grindr") e 2) que tenham sido vítimas da mesma pessoa, uma vez que o terceiro caso claramente difere dos outros dois num possível "modus operandi".
A existência de um serial killer de homossexuais não é algo inédito. Nos anos 80, eram assassinatos motivados pela orientação sexual. Um dos mais famosos foi o "Maníaco do Trianon", Fortunato Botton Neto, acusado de matar 13 vítimas, amarrando seus braços e pernas uns nos outros, enfiando meias na boca e esfaqueando. O livro "Dias de Ira", de Roldão Arruda, conta bem essa história. Figuras icônicas como Luiz Antônio Martinez Correa, irmão do ator e diretor Zé Celso, também foram vítimas de crimes de ódio - ele foi assassinado com 107 facadas enquanto estava amarrado. Em maio do ano passado, José Tiago Correia Soroka foi preso em Curitiba (PR), sob acusação de assaltar e matar homens que conhecia em apps. Em Londres também já houve um serial killer do Grindr, chamado Stephen Port. Não se pode negar: LGBTs são, com constância, alvos de crimes com requintes de crueldade. Basta olhar a história recente. Não é incomum achar espancamentos, apedrejamentos, asfixias.
Não é impossível, portanto, em um país que ataca tanto quem discute questões de gênero, que histórias como essa se repitam. Neste caso, especificamente, criou-se uma grande histeria no Twitter. Todo mundo soube do "amigo de um amigo". Cinco casos tornaram-se onze.
Para que se estabeleça que existe um serial killer é preciso haver mortes em sequência conectadas pelo modo como ocorreram e pela motivação. Da mesma maneira a localidade e a linha temporal tem de ser estabelecida.
A coluna não tem a intenção de expor ninguém, mas foi atrás dos tweets originais, que deram conta de que haveria um serial killer. Questionados, dois autores disseram ter ouvido a informação "de amigos" - um amigo médico "e não foi um único", disse um deles. Nenhum deles conseguiu elencar cinco nomes ou apontar cinco casos. Todos se referiram apenas ao caso de Wellington, que, sim, é assustador e sempre bom repetir: tem grandes chances de ter sido homicídio. Um deles chegou a dizer que o verdadeiro assunto a se discutir não é a morte, mas sim o "chemsex", que pode motivar mortes acidentais pelo uso de drogas durante o sexo - e, de fato, LGBTs têm discutido muito o uso de metanfetamina nos últimos dias.
É desses mistérios de rede social como cinco casos viraram onze tão rapidamente. O que é seguro dizer é que todos os procurados pela coluna referiam-se a Wellington. Outros sempre foram ouvidos de "amigos de um amigo". No grupo de whatsapp de um edifício da Bela Vista cuja boa parte dos moradores é LGBT, há até foto de suspeito circulando.
No Twitter, afirma-se que a polícia encobriria os casos registrando tudo como suicídio. Na realidade, mortes como estas são - e foram, é fato - registradas como "mortes suspeitas". A hipótese de suicídio precisa ser confirmada após investigação e, aí sim, incluída via relatório no boletim.
A essa altura, o pânico se instalou em parte da comunidade gay. E há mesmo que se tomar cuidado. Ao encontrar alguém no aplicativo, todos devem tomar cuidados básicos: mandar localização para um amigo, o endereço, se possível foto ou perfil da pessoa. É importante estar precavido.
Também é igualmente importante acreditar nos dados. Antes de publicar nas redes algo como alerta, checar torna-se necessário. Um número que aponta mortes tem também de apontar vidas. A quem pertenceriam, portanto, as cinco vidas ceifadas em São Paulo? Quais as suas histórias? Elas existiam de fato? No Brasil, já vimos casos em que rumores culminaram em mortes. Em 2014, no Guarujá, Fabiane Maria de Jesus foi linchada brutalmente após oferecer fruta a uma criança - acharam que ela seria uma sequestradora que tanto especulavam em redes sociais.
O que as redes sociais podem fazer, mais do que espalhar o pânico com base em indícios e não fatos, é cobrar das autoridades: os celulares de Wellington Cardoso e Luiz Carlos Araújo foram periciados? Se ainda não, por que a demora? Se houve crime, eles não podem seguir impunes. Aos LGBTs, resta proteger os seus amigos, sempre procurar informações baseadas em dados confiáveis e torcer para que essa história não fomente ainda mais ódio em LGBTfóbicos.
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