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Precisamos celebrar a história de Popó Vaz - e aprender com sua partida

Popó Vaz: maior exemplo de superação e resiliência - Reprodução/Instagram
Popó Vaz: maior exemplo de superação e resiliência Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

16/03/2022 12h24

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A essa altura, passados dois dias do ocorrido, tudo o que havia para ser falado sobre Paulo Vaz já foi dito. Na última segunda-feira (14), Popó, como era carinhosamente chamado, nos deixou e abriu um vácuo imenso na comunidade LGBTQIAP+. Eu não era seu melhor amigo, longe disso, mas nos últimos tempos andávamos cada vez mais próximos, nos falando e nos encontrando com constância.

Popó, me ajudou, inclusive, a escrever um texto que publiquei na última sexta-feira (11), sobre como o Twitter fez surgir um suposto serial killer de gays. Ele foi, aliás, a motivação para isso. Mal acordei, ele, que havia chegado de um plantão, perguntou se podia me ligar e abriu uma conversa em vídeo. Passamos ponto a ponto do assunto a manhã toda, antes de ele, já exausto por ter trabalhado a madrugada toda, ir dormir. Quando acordou, elogiou o que leu - e, jornalista que sou, fiquei todo feliz de receber elogio de um investigador.

E é importante deixar claro: Popó era mais que um investigador. Era alguém que desde criança sonhava em ser policial. E realizou isso da maneira mais transgressora possível, como o primeiro homem trans da corporação, fato que nunca escondeu desde que entrou na Academia. No dia em que o perdemos, vários dos amigos dessa época apareceram em sua casa, incrédulos, repletos de elogios à conduta e à ética dele. Popó era CDF.

popo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Com Popó.
Imagem: Arquivo pessoal

O trabalho na polícia e o carisma transbordante fez com que ele virasse uma referência também nas redes sociais e fosse transformado em influenciador, procurado com constância por algumas marcas. Não é exagero dizer que ele era o homem trans mais famoso do país. Era uma referência e, por falar de maneira tão cotidiana sobre o assunto, abriu caminho para muita gente. Salvou muitas vidas que precisavam de um estímulo, de esperança.

No Brasil, de acordo com a Agência Senado, a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos. A média nacional para pessoas cisgêneras, segundo dados do IBGE, é de 75,5 anos. Quando a violência não é direta, ela, de maneira simbólica, também provoca danos à saúde mental. Um relatório chamado "Transexualidades e Saúde Pública no Brasil" aponta que 85,7% dos homens trans já pensaram em suicídio ou tentaram cometer o ato.

As redes sociais, nos últimos tempos, têm fator decisivo muitas vezes. É grande a quantidade de pessoas que encontram licença para a LGBTfobia nesses espaços sem receber punição. Desde o último domingo (13), Popó se deparou com muitas dessas mensagens. E aqui vou falar brevemente sobre o assunto: às sete da noite, depois de dormir durante todo o dia, ele acordou e se deparou com algumas dessas mensagens. Em mais uma ligação de vídeo - a gente amava -, ainda falei para ele, tentando não deixá-lo mais chateado:

- Popó, é domingo à noite e no domingo a gente precisa ser feliz, não precisa?

- Precisa, amigo.

- É novidade que tem escrota e transfóbica no Twitter? Não. Você precisa ler isso e ficar triste num domingo à noite? Não. Então sai do Twitter já e nem lê nada.

- É que eu já li, amigo.

Sim, esse domingo era um dia pessoalmente agitado, em que um vídeo íntimo havia ganhado as redes. Popó era casado, tinha uma relação de regras específicas e próprias - e todos os acordos foram devidamente respeitados até o fim. E, sobre essa questão, preservarei meu amigo, que, quanto a isso estava tranquilo, e lidou com tudo com a serenidade que sempre teve em todas as situações - "Policial, né, more? Treinado para tudo", brinquei.

Como todo LGBT no Brasil, Popó tinha um turbilhão de questões que o acompanharam ao longo da vida. E estava acostumado aos ataques nas redes sociais. Eu peço licença aqui para chamar a atenção para o fato de que: 1) o que para muita gente é brincadeira, na verdade é preconceito; 2) o que para muita gente é crítica, surge a partir de motivação LGBTfóbica; 3) as redes sociais adoram falar sobre alguém, mas raramente pensam em como esse alguém se sente - e essa autocrítica precisa ser feita.

Fui a última pessoa com quem Popó falou. No final do domingo, ele me escreveu. Estava triste especificamente com uma mensagem. Um ator, empenhado em aumentar seu engajamento com a polêmica do dia, publicou uma frase que parecia piada, mas que de engraçada nada tinha. Ela partia de um pressuposto que não o agradou. "Eu tava de boa até ver esse tweet em específico. Me atingiu como indivíduo (leia-se trans) muito forte!", me escreveu meu amigo, acrescentando que já estava estressado com outras questões, como o trabalho. "A frase me DESTRUIU! Tô me sentido humilhado. Muito humilhado."

Perguntei se ele queria encontrar. Se queria conversar. Falei que a gente não era responsável pelos erros dos outros. Chamei ele para a minha casa. Me ofereci para ir à casa dele, ver "BBB" juntos - ele amava o programa, entrava em fóruns de áudio no Twitter sempre -, mudar de assunto. "Não precisa. Vou deitar. Bjo amigo", foi a última mensagem que recebi do meu amigo. Ainda escrevi várias outras em seguida. Falei para me ligar a hora que quisesse, beber uma água, respirar fundo, falei para vir dormir na minha casa, me ofereci de novo para ir até a dele. "Você é maravilhoso e só merece o bem, só merece amor. Eu tô aqui pro que der e vier", escrevi.

Pela manhã, mandei áudio de bom dia, achando que ia animar o dia dele. Pensei que ainda estava dormindo. Entrei em duas reuniões e numa transmissão ao vivo. Assim que saí, abri os stories e o primeiro a aparecer era o dele. Apenas para amigos, ele deixou claro o quanto aquele tweet em específico o afetou. No aberto, uma mensagem com seu endereço. Liguei para amigos em comum e fomos voando para a casa dele, já que ele não respondia e não atendia o telefone.

Fui o último a falar com Popó. O primeiro a estar com ele. Nos últimos dois dias fizemos de tudo para honrar a sua memória e também, a pedido de amigos e da família, informar a todos e cuidar dos trâmites legais. A gente não pode permitir que a vida desse homem incrível seja invisibilizada por causa de especulações nas redes sociais. Alguma lição tem de ser tirada disso tudo.

Alguns, no entanto, parecem não estar dispostos a aprender. Houve quem tenha aberto Spaces, no Twitter, para debater para centenas de pessoas a morte do meu amigo, para passar pano para a transfobia que sofreu. Doeu ainda mais ver que isso partia de membros da comunidade LGBTQIAP+. Vale mesmo tudo por meia dúzia de seguidores a mais? Por meia dúzia de likes? Vai valer a pena para quem escreveu a mensagem que virou gatilho de tudo - já devidamente deletada da rede social sem pedido de desculpas - levar esse peso pelo resto da vida? A gente tem muito a aprender e melhorar.

E daqui, baseado em tudo isso, com lágrimas nos olhos, deixo um pedido: celebrem a história de Popó. Precisamos de mais Popós. Parem de tornar pessoas estúpidas famosas. Não vai ser difícil achar quantas vidas foram mudadas graças à coragem do meu amigo.

Na última terça-feira (15), depois de resolver todas as burocracias - e, acreditem, eram muitas - escolhemos a última roupa do Popó. Ao agente funerário, uma amiga fez um pedido, devidamente reforçado por todos: não deixe de vestir uma cueca nele. A gente sabia o quanto era importante. Fizemos uma rápida despedida dele. Depois de uma breve fala, todos deram um adjetivo que o descrevesse, para ele ouvir o quanto era amado ainda em vida. Inteligente. Lindo. Corajoso. Empático. Carismático. Gostoso. Safado (risos). Corajoso. Exemplo. Lenda. Resiliente - palavra que ele tinha tatuada na perna.

Popó fez história. Vai ser sempre lembrado. Popó era um exemplo de resiliência. E, em nome dele, precisamos continuar resistindo. Nos despedimos dizendo que Popó é para sempre. E será.