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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Filme é explícito ao dar rosto a mulheres mortas por serial killer no Irã

"Holy Spider" é explícito ao dar rosto às mulheres assassinadas por um serial killer no Irã dos anos 2000, mas nunca fetichista.  - Reprodução/Instagram @festivaldecannes
"Holy Spider" é explícito ao dar rosto às mulheres assassinadas por um serial killer no Irã dos anos 2000, mas nunca fetichista. Imagem: Reprodução/Instagram @festivaldecannes

Colunista do UOL, em Cannes

23/05/2022 11h22Atualizada em 23/05/2022 11h22

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A faixa estendida por feministas francesas na escadaria do Grande Teatre Lumière durante a première e sessão de gala de "Holy Spider" é a melhor forma de convergir e, ao mesmo tempo, divergir sobre como tratar o crime de feminicídio e a desumanização das vítimas.

Na faixa, 129 nomes de mulheres vítimas de feminicídio na França desde o último Festival de Cannes. Grosso modo, dez mulheres mortas por mês por serem mulheres.

Mas quem eram elas? Que rosto tinham? Como viviam? Com quem viviam e por quem morreram? Isso, a faixa e o noticiário não mostram.

E é justamente dar cara, corpo, história e humanidade às 16 mulheres mortas por um serial killer no Irã no início dos anos 2000 que o cineasta Ali Abassi faz em "Holy Spider", como o assassino foi chamado pela sociedade iraniana, mais especificamente a da cidade de Mashhad (conhecida como "a cidade dos mártires", a segunda maior do Irã).

Iraniano radicado na Dinamarca, Abassi venceu a mostra Um Certo Olhar em 2019 com o genial "Border". Desta vez, surge com um filme completamente diferente, como bem observou o produtor brasileiro do filme Fred Burle em conversa que em breve será publicada.

Se "Border" tratava da aceitação de si mesmo para encontrar seu lugar no mundo, em "Holy Spider" não há lugar no mundo para as "mulheres impuras, pecadores, perdidas" que se prostituem nas ruas da cidade, quase todas dependentes químicas de ópio (que chega do Afeganistão, aliás).

E é missão de um suposto bom pai de família, veterano da guerra contra o Iraque, pertencente a uma família de mártires limpar as ruas da cidade da vergonha ambulante que estas mulheres são para a sociedade e para a religiosidade iraniana.

Vivido pelo ótimo ator Mehdi Bajestani, o assassino é Saeed Hanae, um empreiteiro de classe média que em casa é um pai dedicado, que trata com carinho sua filha pequena, que é um bom exemplo, ainda que tenha rompantes de raiva inexplicáveis, para o filho adolescente, que é um marido fiel.

Mas às quintas, ele, em vez de jantar com a família da mulher, aproveita que a família vai para a casa dos sogros e percorre as ruas em sua moto, leva as mulheres na garupa para sua própria casa, onde as estrangula com o próprio lenço delas.

É no momento do assassinato que a assinatura de Abassi se impõe com força. Em vez de desviar a câmera para os pés, para as mãos nervosas, deixar apenas a câmera no rosto do assassino, o diretor encara os rostos contorcidos das mulheres. Não desvia o olhar e nos faz também não desviar. É incômodo, é doloroso, explícito em dar cara às estatísticas, mas jamais fetichista. A violência de "Holy Spider" extrapola a frieza dos noticiários, humaniza as mulheres, mas não as objetifica.

Elas têm filhos, mãe, pai, tem a maquiagem borrada (sinal de clientes prévios da noite fatídica, os corpos e as faces marcados por vermelhões e roxos do tratamento nada afável que ganham dos clientes). É duro olhar para elas, mas é potente o ato de encará-las.

Para ajudar a construir esta história real, Abassi criou uma personagem fictícia, a jornalista Rahimi (vivida pela ótima Zar Amir Ebrahimi). Ela é destemida, bem equipada intelectualmente para responder aos absurdos do machismo atávico da sociedade iraniana, ancorada nos códigos morais e religiosos.

É ela, e não a polícia ou a sociedade local, quem não sossega até se fazer de isca para o assassino e lutar por um julgamento justo.

Abassi conta esta história de forma tensa, quase um thriller, com trilha sonora potente e fotografia densa, mas com sobriedade, o que nunca nos distancia do fato de se tratar de um caso real. E se as cenas de assassinato chocam, choca ainda mais descobrir que (no filme e na vida) a opinião pública ficou do lado de Saeed e protestou em prol de sua libertação "pelos serviços prestados à sociedade". Sua mulher não só ficou a seu lado como também concordou com sua "missão", seu filho adolescente viu no pai justiceiro um exemplo a ser seguido.

É este o cerne da questão, é esta semente do ódio que plantamos a cada vista grossa que fazemos diante do machismo estrutural e do feminicídio que revira o estômago e perturba em "Holy Spider". Não é preciso ser a rígida sociedade iraniana para se tratar de feminicídio. Quantas vítimas deste crime morrem no Brasil por ano?

Se a crueza com que a narrativa nos conduz pelas entranhas do pior lado do machismo que invade cada dinâmica social, a sequência final, em que o filho demonstra para a câmera da jornalista como o pai "dava um jeito" nas mulheres usando a irmã caçula de modelo é de arrepiar. "Holy Spider" pode não levar a Palma de Ouro, mas estas cenas já entraram para os grandes, e horripilantes momentos, do Festival de Cannes 2022.