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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Em busca do prazer, Emma Thompson encara tabus em "Boa Sorte, Leo Grande"

Emma Thompson contrata garoto de programa e encara os preconceitos que ainda envolvem sexo e prazer feminino  - Divulgação
Emma Thompson contrata garoto de programa e encara os preconceitos que ainda envolvem sexo e prazer feminino Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

29/07/2022 04h50

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Nancy é uma professora de religião aposentada que, já viúva e na faixa dos 60 anos, vê-se diante de uma realidade melancólica: nunca teve um orgasmo, só fez sexo com um homem na vida; no caso seu marido, com quem transava mecanicamente, e sua vida sexual está longe de ter sido satisfatória. Além disso, nunca fez nada de memorável, nunca realizou nenhuma grande aventura e sempre seguiu as regras.

Um dia, decide mudar pelo menos alguns pontos de sua vida sexual e marca um encontro com um garoto de programa em um quarto de hotel de Londres, disposta a riscar alguns itens de sua lista de desejos e feitos sexuais nunca realizados. É aí que sua grande aventura começa.

Leo Grande é o nome, profissional, do rapaz. Do alto de sua beleza que mistura uma masculinidade sexy com uma doçura acolhedora, Leo provoca sentimentos contraditórios em Nancy. Ela o deseja e respeita sua profissão, mas se sente culpada não só por pensar no fator de exploração sexual que há na vida dos profissionais do sexo ou na história de vida difícil que Leo deve ter. Ela também sente vergonha de seu corpo, já não mais jovem, sente inadequação por não ter tido uma vida sexual interessante, sente, enfim, todo o peso de ser uma mulher madura que busca o prazer.

Assim começa "Boa Sorte, Leo Grande", que traz Emma Thompson (Nancy) e Leo Grande (Daryl McCormack, de Peaky Blinders) em uma história intimista, passada praticamente toda em um quarto de hotel, mas jamais tediosa.

Leo Grande - Divulgação - Divulgação
Emma Thompson e Daryl McCormack em "Boa Sorte, Leo Grande"
Imagem: Divulgação

A premissa que poderia ser um clichê sem fim se revela um roteiro engenhoso, repleto de sutilezas e humor, conexão e intimidade, além de um tanto de luxúria bem-vinda, é verdade. Escrito pela também atriz britânica Katy Brand, "Boa Sorte, Leo Grande" se torna um filme raro com a direção precisa da australiana Sophie Hyde e a atuação de Emma e Daryl. Há um equilíbrio perfeito entre texto, direção que extrai o máximo de um ambiente mínimo, da química rara entre os atores, que dançam um balé perfeito, oscilando entre desejo e acolhimento, intimidade e distanciamento.

"Boa Sorte, Leo Grande" é um deleite para olhos cansados de lugares comuns quando o assunto é como a sexualidade feminina tem sido tratada no cinema. O roteiro não julga Emma e nem Leo, mas tampouco deixa passar as contradições e até hipocrisias que fazem não só deles, mas de todos nós, humanos.

A busca do prazer de Nancy vem carregada de culpa, de auto-julgamento, de não aceitação de seu corpo, sua história, seus desejos. Ao mesmo tempo, ela precisa se libertar de toda a carga que a impediu de ter prazer até hoje. É uma jornada nada fácil, nada óbvia e que nos faz questionar sobre o quanto estamos obcecados com sexo, com corpos perfeitos e sobre como, na verdade, não avançamos tanto quando o assunto é o prazer feminino.

Sophie Hyde - Reprodução - Reprodução
A diretora Sophie Hyde assina a direção do longa, que trata da busca do prazer feminino, tema ainda tão tabu
Imagem: Reprodução

Todos estes temas interessam Sophie Hyde, que, assim que recebeu o roteiro do longa, adorou a ideia de filmar não uma história sobre sexo, mas sim sobre intimidade, sobre autoaceitação, sobre como precisamos contar novas e diferentes histórias.

Sobre isso e sobre como, para ela, não valorizamos o prazer da mulher porque, no fundo, como sociedade, "nós não valorizamos as mulheres", Sophie falou ao Splash UOL.

Sinto que hoje vivemos em uma sociedade que é obcecada por sexo, mas isso não significa que nós estamos fazendo sexo melhor, no sentido que estamos em geral mais obcecados em parecer sexy, no sexo como uma clichê e não como uma oportunidade de ter prazer de verdade, intimidade ou até mesmo se divertir. Você concorda? Quando você teve a ideia de fazer este filme, que sentimentos te moviam?

Sim, concordo. Realmente acho que a gente está obcecado com sexo, mas não muito preocupados em como o sexo é sentido. Acho que hoje a gente está obcecado em como o sexo aparenta ser. O mesmo ocorre com nossos corpos. A gente está obcecado em como nosso corpo aparenta ser para outra pessoa porque é isso que tem sido valorizado em nós, particularmente nas mulheres. Mas a ideia de que a gente talvez passe tempo pensando em como o sexo é, ou é sentido, ou o seu corpo sente e que você talvez determine o que quer a partir disso, em vez de parecer sexy or atraente, é imensa. A gente deveria tratar o sexo assim, mas infelizmente não é como fazemos. Mas amo a ideia de que a gente pode fazer isso. Então, eu recebi o roteiro de um filme em que uma mulher quer ter uma vida sexual melhor e, então, ela contrata um profissional do sexo para ajudá-la. E esta mulher ia ser interpretada pela Emma Thompson. Achei esta ideia irresistível porque eu podia ver Emma no papel e eu gosto da ideia de intimidade e de explorar a intimidade e o sexo entre duas pessoas e limitar isso a um quarto. Então, esta ideia de intimidade e conexão e intimidade física tanto quanto num jogo emocional de poder, ou numa dança, era muito importante para mim. Foi isso o que eu imediatamente senti.

Seu filme lida com questões tão difíceis, mas também naturais, como sexualidade, prazer e intimidade. Por que você acha que, especialmente no caso das mulheres, somos ainda tão conservadores, temos tanto medo que a mulher sinta prazer ou do prazer feminino?

Esta vai ser uma resposta longa porque sinceramente eu acho que as mulheres ainda são vistas como objetos que estão à disposição dos homens. Para que os homens comentem sobre seus corpos, para olhar seus corpos, que suas histórias existem para servir os homens. Eu acho que isso ainda é um problema. A gente ainda tem que explorar toda a possibilidade de que todos somos humanos. E as histórias das mulheres ainda são limitadas por conta das histórias que nos contaram e que temos visto. Então, a gente realmente precisa de mais histórias de mulheres, homens, pessoas que não se encaixam nestes dois gêneros, diferentes idades, raças, culturas, riquezas, origens sócio-econômicas, todas estas coisas. Na verdade, a gente só precisa de mais histórias diferentes. As histórias que primeiramente nos foram contadas são limitadas a um certo tipo de pessoa. Então, por que não achamos que o prazer das mulheres é importante é porque nós não valorizamos as mulheres. Não sei mais o que dizer, eu sinto que a gente está meio que atravessando as coisas o tempo todo e tentando criar histórias agradáveis sobre, mas a gente simplesmente não valoriza as mulheres como seres humanos; e a gente deveria valorizar.

Leo Grande - Divulgação  - Divulgação
Emma Thompson e Daryl McCormack em "Boa Sorte, Leo Grande"
Imagem: Divulgação

Um dos aspectos que me impressionam no filme é a forma como Emma Thompson / Nancy aprende sobre sua beleza, seu corpo. Você poderia falar um pouco sobre como você e Emma discutiram este aspecto em especial da história e também do processo de filmagem?

Ficou muito claro para nós que estamos todos imersos em uma cultura que nos diz que nossos corpos não são o suficiente, que devíamos ter vergonha dos nossos corpos, que eles deveriam ser de uma forma muito específica e limitada. Ninguém sobrevive a isso. Então todo mundo se sente péssimo em relação a seu corpo. E isso toma tanto tempo nosso e tanta energia que podia ser gasta em outras coisas. Isso é algo realmente importante para Emma e para mim também. Então a gente sabia que isso iria sublinhar toda a vergonha e os sentimentos do filme. A gente tinha um forte propósito em enfrentar isso, mas não de uma forma exagerada. Certamente não em um filme em que necessariamente se sente que é sobre estas coisas. Mas para nós a história de Nancy, a vergonha que ela sente em relação a seu corpo significa que ela nunca tomou o devido tempo para trabalhar no que ela quer, no que é bom e também nunca se questionou sobre todas as coisas. Ela apenas se encaixou no papel em que ela supostamente devia se encaixar. E algo acontece quando você começa a rejeitar isso, quando você de repente pode assumir coisas diferentes sobre seu corpo como um todo; e você começa a questionar o que você disse a outras pessoas, coisas que estão repletas de vergonha como, por exemplo, o que Nancy disse a seus alunos ao longo de sua vida. Então, a gente tinha um desejo forte de explorar isso e de questionar a ideia que o corpo de alguém está à disposição de alguém, antes de mais nada. A gente fez isso por meio das conversas que tivemos e nos ensaios que fizemos no quarto; e também a gente tentou colocar isso no roteiro e na forma como fizemos o filme. E estes são aspectos fundamentais do que estávamos contando.

A intimidade, a química entre Daryl McCormack e Ema Thompson é incrível, mas eu tenho certeza que você também (como uma equipe, digo) construiu esta atmosfera de confiança e intimidade. Como foi, primeiramente, escalar e trabalhar com Daryl e dirigir 'o casal" em um set tão íntimo?

Escalar Daryl foi incrível. A gente tinha tantos atores ótimos que vieram e apresentaram seu material. Teve tanta gente excelente que eu espero que continuem e façam mais coisas e eu tenho certeza que eles vão. Mas, a gente viu o vídeo do Daryl e tanto eu quanto Ema realmente nos impressionamos com ele porque, primeiramente, claro, ele é ótimo. Ele é um ótimo ator e muito talentoso. E isso era dado, pois a gente tinha que buscar pessoas talentosas. Dito isso, Daryl também tinha uma generosidade verdadeira e tem a qualidade real de ser um cara gentil como ator, apesar do fato de ser bem alto e de que poderia ser uma figura imponente. Este mix entre sua presença física e sua generosidade gentil era muito intrigante para nós. E a gente realmente foi atraída por isso. Além disso, Ema e Daryl tiveram uma química imediata, algo que rolava entre eles que era um pouco ardente, mas também de muito companheirismo. Eles sabiam que eles podiam contracenar e confiar um no outro. E isso foi crucial para os dois. Eles mantiveram aquela pequena chama e trabalhamos juntos em um quarto, fazendo coisas íntimas, conversando, conhecendo um ao outro, compartilhando coisas, fazendo coisas físicas sim, todas estas coisas. Mas juntos eles também conseguiram criar um espaço entre eles que era realmente importante para manter algo que eles precisavam para atuar. Então, é um mix, como sempre é. Este equilíbrio entre nosso trabalho e eles trabalhando especificamente, unindo talentos e construindo uma relação entre eles.

Como você tem sentido a reação do público masculino? Estou curiosa porque sinto que não só as mulheres mas especialmente homens também deveriam, e gostaria, de ter a oportunidade de conhecer mais sobre a sexualidade feminina.

Acho que muitas mulheres se sentem vistas quando assistem ao filme e sentem que há algo familiar. Elas entendem que elas não necessariamente têm visto muito de si na tela do cinema. É realmente maravilhoso ver esta reação. Da mesma forma, pessoas que não são mulheres têm me mandado mensagens e tem realmente respondido ao filme também, seja porque elas também se conectam aos sentimentos de Nancy e como ela se relaciona com sua sexualidade ou porque elas veem algo que não tiveram acesso ou não entendiam antes. Porque a gente não precisa ver só filmes que se parecem conosco. A gente quer ver filmes e histórias que nos permitam sentir como outra pessoa sente. Então, sim, eu sinto que homens e mulheres e pessoas que não se identificam com estes dois gêneros têm realmente respondido ao filme e acho que realmente curtiram e encontraram pontos de contato. E espero que continuem a assistir. Acho que é um filme para todos e é um grande prazer ver esses dois atores e esta intimidade entre os dois personagens, além de ver como eles desafiam as expectativas um do outro e surpreendem um ao outro. É sempre uma delícia de ver na tela.