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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Entre a fábula e o épico, Iñarritu leva o semi biográfico "Bardo" a Veneza

Alejandro Iñarritu e a equipe de "Bardo" no Festival de Veneza 2022 - Divulgação
Alejandro Iñarritu e a equipe de "Bardo" no Festival de Veneza 2022 Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

01/09/2022 21h21

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Dia 1 de setembro é um dia duplamente simbólico para o cineasta mexicano Alejandro Gonzalez Iñarritu. Além de ser a data da estreia de "Bardo", seu primeiro primeiro longa em sete anos ( desde "O Regresso", com Leonardo Di Caprio, de 2015), foi também a data que ele e sua família emigraram há 21 anos do México para os Estados Unidos, depois do sucesso de "Amores Brutos" (2000), que abriu as portas de Hollywood para ele. Em seguida, vieram outros sucessos como "Babel" (que lhe garantiu a Palma de Ouro de Diretor ), "Birdman" e "O Regresso", pelos quais ele levou o Oscar de direção em 2014 e 2015.

Desde então, ele vem tocando outros projetos e dirigiu o curta em Realidade Virtual "Carne e Areia". Com "Bardo - Falsa Crónica de Unas Cuantas Verdades", que compreensivamente ocupou muito de seu tempo nestes sete anos, ele realiza seu filme mais pessoal e talvez mais épico. Como ele mesmo definiu na coletiva de imprensa durante o festival na tarde desta quinta-feira, o longa é uma grande "viagem emotiva não autobiográfica". Ou quase. Há muito de autobiográfico nesta história sobre Silverio (Daniel Giménez Cacho), um jornalista (substituindo o cineasta da vida real) mexicano que, após 15 anos vivendo nos Estados Unidos, tornou-se um documentarista respeitado em todo o mundo, está prestes a receber um grande prêmio norte-americano dedicado a jornalistas que se destacam pelo trabalho, pela ética e pela busca da verdade, mas que também está em crise e em uma situação de "limbo" ( ou o Bardo, um conceito budista que diz, em linhas gerais, respeito a um estado intermediário entre a morte e o renascimento, mas que na trama também pode ser lido como estado intermediário entre duas culturas, dois países, duas nacionalidades, duas visões de mundo).

Além das três horas deste épico fabular e onírico, o que marca "Bardo" é o cacife e a coragem que Iñarritu ganhou com o sucesso de seus filmes para, finalmente, contar uma história com liberdade, que fala não só de sua história, suas neuroses, viagens egoicas, mas também do povo mexicano e da própria América Latina. E mais: a coragem e a liberdade para realizar um filme sem nenhum grande nome hollywoodiano, com elenco praticamente todo mexicano, numa história quase toda falada em espanhol. Tanto para os acertos quanto para as arestas do filme, não há desculpa: Iñarritu fez o filme que queria. E isso é ótimo.

O cineasta Alejandro Iñarritu dirige o ator Daniel Gimenez Cacho em cena de "Bardo", rodado no México e nos EUA  - Divulgação - Divulgação
O cineasta Alejandro Iñarritu dirige o ator Daniel Gimenez Cacho em cena de "Bardo", rodado no México e nos EUA
Imagem: Divulgação

Com estreia prevista para dezembro na Netflix, o filmes tem mais de três horas de duração, nas quais o diretor mergulha na história deste jornalista que navega entre o sonho e a realidade, a vida e a morte, o delírio e a avaliação precisa da realidade de um povo e um país que vem sendo massacrado pelo colonialismo, pelo imperalismo e pelas lógicas perversas do jogo do poder desde sempre. Não por acaso, Silverio, antes de receber o prêmio em Los Angeles, onde vive com um visto de "artista"( O1 ou o O3 ), volta à sua Cidade do México natal para ser homenageado pelo sindicato dos jornalistas mexicanos. É uma viagem nostálgica e também neurótica, dolorosa, mas também repleta de amor por um país que, na trama, está prestes a vender a Baja Califórnia para os Estados Unidos, o mesmo país que, no século 19, venceu a Guerra Estados Unidos-México e anexou um grande território até então mexicano.

Iñarritu é verborrágico, mas consegue de forma orgânica incluir toda a história com H do México em cenas surreais da trajetória e dos delírios de Silverio. "Toda nação é basicamente uma grande quantidade de histórias que, desde crianças, nos dão um sentimento de pertencimento coletivo. E estas histórias nos são dadas por meio de um sistema de valores. O descobrimento da América se dá de duas maneiras: o conquistador e o conquistado. Tudo isso é filtrado por nosso sistema nervoso. Estas histórias em geral se questiona quando se sai de seu país, pois se pode ver com mais clareza ou mais confusão", declarou o diretor na conversa com jornalistas.

Há clareza e há confusão em "Bardo", mas há grandes momentos cinematográficos que fazem do filme uma viagem que vale a pena ser vista na tela grande. A exibição do filme nos cinemas mexicanos está garantida pela Netflix antes que esteja somente no streaming. No restante do mundo, ainda há dúvida. No Brasil, a O2 Play tem lançado diversos títulos da Netfliz nos cinemas por pelo menos uma ou duas semanas. Sobre ter um épico intimista como este visto na telinha, o cineasta diz não se importar. "Eu cresci vendo os grandes mestres como (Luís Buñuel), (Federico) Fellini, entre outros, no VHS, em cópias ruins. Tenho uma coleção de VHS que hoje eu olho e são impossíveis de se ver. Mas o que fica afinal são as ideias. Claro que o as salas são como a catedral do cinema, mas estamos mudando. Passamos do cinema, para a TV, o streaming, daqui a pouco vamos ter outra coisa", afirmou.

Cena de  "Bardo", que transita entre a realidade e o sonho para tratar da noção de que o que importa é como as histórias são contadas  - Divulgação - Divulgação
Cena de "Bardo", que transita entre a realidade e o sonho para tratar da noção de que o que importa é como as histórias são contadas
Imagem: Divulgação

Por falar nos mestres, as referências a Fellini (principalmente ao vagar/ voar de Marcello Mastroiani, em "Oito e Meio" e no trombone da trilha sonora pontuando os momentos de humor e/ou constrangedores) são até óbvias. Fellini desenhava seus sonhos ao acordar em um bloco que ficava em sua cabeceira. Fellini filmava seus sonhos. Buñuel levou o fim entre as fronteiras entre sonho e realidade às últimas consequências. E outros cineastas que inspiram Iñarritu como o sueco Roy Andersson e o franco-chileno Alejandro Jodorowsky, também criaram e expandiram a noção de realidade (sempre tão cara aos jornalistas), sonho e tempo como poucos.

São justamente as fronteiras entre a História real (ou a contada, em geral pelos vencedores), o sonho e os fatos que o cineasta mexicano quer borrar em "Bardo". Ele, que declarou que desde 2012 tem praticado a meditação com um mestre budista vietnamita, não está mais preocupado com a linearidade de tudo. Muito menos com o conceito de sucesso, que, em uma das cenas mais elogiadas do filme, citando seu próprio pai, questiona: "Ele sempre disse que o sucesso pode envenenar. Porque ele teve sucesso e também o perdeu. Para meu pai, o sucesso tinha dois riscos: a tentação à soberba, que o intoxicava, e a perda, que trazia dor. Ou seja, ter sucesso era uma condenação. Tem que dar um trago porque senão intoxica."

É justamente dar-se este tempo, permitir-se e arriscar a fazer um filme grandioso sem a garantia de um elenco estelar (mas muito competente), com a duração que ele achasse necessária que faz de "Bardo" um projeto único de Iñarritu. A despreocupação com o sucesso pode, ironicamente, até levá-lo ao Oscar. Houve quem visse o filme como uma grande viagem egocêntrica e egóica longa e verborrágica. Houve quem (aparentemente os latinos, que lotaram a coletiva de imprensa e que empatizam com a História e a história mexicana) visse algo atemporal e mítico em "Bardo", ainda que longo.

Sobre o tempo, o cineasta não se preocupa: "Nos sonhos não existe tempo. O que a câmera faz é a fragmentação do tempo e espaço. Me parece que a oportunidade da reinterpretação da realidade. Para mim seria difícil fazer um filme de forma convencional com ato 1, ato 2, quem matou quem etc. Me parece que o cinema seja muito interessante quando feito com liberdade."

É este sonho que ele nos conta e cada detalhe importa. "Quando contamos um sonho a alguém, o importante são os detalhes. Este filme que partiu daí, as imagens foram aparecendo com grande naturalidade."