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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Veneza: 'Argentina, 1985' parte da Ditadura, mas é mais atual que nunca

Ricardo Darín e Peter Lanzani em cena de "Argentina, 1985", que estreia neste ano no Prime Video - Divulgação
Ricardo Darín e Peter Lanzani em cena de 'Argentina, 1985', que estreia neste ano no Prime Video Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

03/09/2022 16h21Atualizada em 03/09/2022 21h58

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Veneza já tem, até o momento, seu filme favorito e ele vem da América Latina. "Argentina 1985", estrelado por Ricardo Darín, emocionou tanto a imprensa quanto o público do festival neste sábado.

Ainda há muito festival pela frente e se o júri presidido por Julianne Moore vai concordar, é um exercício de futurismo. Mas o certo é que o longa dirigido por Santiago Mitre conseguiu o raro feito de arrancar lágrimas, risos e aplausos ao contar a história real do "Juicio de 1985", o julgamento dos militares responsáveis pelos crimes da fase mais terrível da Ditadura que dominou a Argentina por sete anos (de 1966 a 1973), mas que deixou 30 mil desaparecidos. A propósito, isso está escrito no lenço usado pelas Mães da Praça de Maio e que foi exibido pela equipe do filme no tapete vermelho da sessão de gala, assim como a bandeira argentina.

Pode parecer patriotismo, mas a equipe de "Argentina, 1985" pode e deve se orgulhar do filme, que conta uma história ocorrida há 37 anos mas que é mais atual que nunca. Em uma semana em que a vice-presidente da Argentina sofreu um atentado e em que os ânimos se acirraram no país, contar a história de como o primeiro julgamento dos ditadores sedimentou o caminho da retomada da democracia argentina nos lembra que a democracia precisa ser constantemente reconquistada e protegida, como comentou o presidente argentino, "é o evento mais grave da democracia argentina desde a Ditadura".

"Foi forte e um grande choque para todos nós. Muitos de nós estávamos no avião quando o atentado aconteceu e descobrimos quando aterrissamos. E na verdade é um ato horrível que pensamos que nunca poderia ocorrer porque, se há algo que nós queríamos, era que o Juicio de 1985 tivesse acabado para sempre com o uso da violência como uma possibilidade de se resolver conflitos políticos. Isso é algo que repudiamos energicamente", respondeu Mitre quando questionado sobre a ironia da atualidade que "Argentina, 1985" tem ao estrear mundialmente justamente nesta semana.

O cineasta completou: "Acreditamos que podemos e que podíamos e achávamos que o 'Nunca Mais', como disse o promotor Strassera, seria para sempre. Mas a violência segue existindo e acreditamos que o filme cobra uma vitalidade que nós não pensávamos que cobraria".

Strassera, no caso, é o promotor Júlio Strassera, vivido por Darín, que, ao lado de Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), que em 1985 lideraram uma equipe que investigou e processar militares de alta patente que comandaram as Forças Armadas argentinas no período em que ocorreram milhares de prisões, torturas, violações, assassinatos, entre outros crimes contra a humanidade e contra os que se opunham ao regime ditatorial militar.

"Todos nós sofremos. É muito difícil escapar do fato de que no âmbito familiar ou indiretamente ninguém tenha tido nenhum caso de dor. Todos de alguma forma passamos por isso. Todos os dias sabemos que quando se instala em uma sociedade o terrorismo de estado o primeiro que faz a 'inteligência' deste terrorismo é tentar anular os cidadãos, fazer com que não haja comunicação, o encontro, o cara a cara, que não se ouça a voz. E isso faz com que em muitos casos a verdade demore para encontrar a pessoa que deve ser encontrada. E o que aconteceu com a gente, tão jovens, estávamos sem informação e comunicação. Sempre foi muito difícil de saber o que acontecia. Havia gente mais informada, mas para nós adolescentes era mais difícil. A verdade é que demorou um tempo para que a verdade aparecesse", declarou Darin quando questionado sobre como passou os anos da Ditadura, quando era muito jovem.

"E sobre o Julgamento, não nos esqueçamos que não houve uma cobertura televisiva, mas sim a parte final foi muito retratada. Ninguém acreditava, não estava convencido de que o julgamento fosse ocorrer de fato. Achavam que era um jogo político que não ia levar a nada. Mas no final a sociedade estava muito mais ansiosa e atenta para saber o que ia ocorrer", completou o ator, forte candidato a Copa Volpi de Melhor Ator.

Para quem viveu os anos 1980 na América Latina, o "Julgamento de 1985" foi um período marcante, em que o dia a dia do processo era extensamente coberto pela imprensa argentina, mas também pela brasileira (em menor escala, claro) e que revelaram para outros países do continente que era possível superar as tantas ameaças e o medo da violência com coragem, e com a força e a energia das novas gerações. No caso do "Julgamento", Stressera e Ocampo contaram com uma incansável equipe de jovens que percorreu o país em busca de histórias, testemunhas e documentos para provar que não se tratavam de casos isolados, mas sim que a violência e a tortura e o sadismo como arma politica eram produto de uma política de um estado totalitário e que, portanto, os comandantes militares deveriam ser julgados por um tribunal civil e condenados por seus crimes.

A história já faz parte da História da Argentina, mas acompanhar com detalhes como o processo mobilizou todo um país que, diante das atrocidades reveladas pelas testemunhas que foram brutalmente torturadas, fez com que a sociedade argentina deixasse de se dividir entre esquerda X direita, poder oficial X guerrilheiros, mas sim se unissem em prol da democracia, do respeito aos direitos humanos e do fim da violência como arma política, seja qual fosse "o lado".

São justamente as cenas em que as testemunhas são ouvidas, cujos registros reais de fato foram também filmados, que provocaram nó na garganta, aperto no peito e lágrimas no público de Veneza, que aplaudiu efusivamente e que mostrou identificação com a luta dos argentinos, seja de que continente e país fossem. Para o público brasileiro do festival, que viu o Brasil declarar a Lei da Anistia em 1979 e nunca julgar os crimes cometidos pelos ditadores militares brasileiros, há um sabor amargo na garganta ao final do filme. Mas a certeza é de que o presente é sempre produto do passado e do processo histórico. O "Julgamento de 1985", como informa o filme nos créditos finais, abriu caminho para mais de outros mil processos contra criminosos da Ditadura Militar argentina, que ocorrem até hoje e lutam pelo sonhado "nunca mais" propagado pela população do país e por Strassera em seu discurso final.

"Este é um filme sobre o Julgamento de 1985, mas é também um filme sobre a fragilidade da democracia e não há democracia sem justiça. E não há nada mais contemporâneo no mundo em que vivemos que a fragilidade da democracia e da necessidade de compromisso que temos com a cidadania e de justiça para que todos possamos continuar a ter nossas liberdades individuais", também pontuou um dos produtores Axel Kuschevatsky.

Com narrativa clássica, mas competente, roteiro muito bem construído, mesclando humor, drama, tragédia e o típico suspense dos bons filmes de tribunal, "Argentinas, 1985" estreia ainda neste ano na Amazon Prime e certamente já começou hoje seu caminho rumo ao Oscar de Filme Estrangeiro 2023.