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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Entre sexo, fama e frustração, "Blonde" refaz via crucis de Marilyn Monroe

"Blonde" traz Ana de Armas em cenas controversas, que incluem sexo e até violência domêstica - Divulgação
"Blonde" traz Ana de Armas em cenas controversas, que incluem sexo e até violência domêstica Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

28/09/2022 04h00Atualizada em 28/09/2022 11h44

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Qualquer filme, livro, texto que trate de Marilyn Monroe esbarra, necessariamente, no perigo de cair no lugar comum, no clichê, em julgamentos baseados muito mais no mito, no ícone, na estrela do que na figura humana que deu vida e foi consumida por Monroe: Norma Jeane Mortenson.

É exatamente dar mais espaço a Norma para se entender melhor a via crucis que foi a vida da atriz para além dos holofotes que o diretor Andrew Dominik se propôs ao dirigir "Blonde", adaptação para o cinema do livro homônimo da norte-americana Joyce Carol Oates estrelada por Ana de Armas (ótima no papel, que faz valer a pena as quase três horas de duração) que estreia nesta quarta (28) na Netflix.

Sobre a biografia de 2000, a própria autora faz questão de frisar que não se trata de uma história documental, mas sim de uma ficção. Tanto que em vez de dar nomes aos maridos reais de Marilyn, a autora dá apelidos. Joe DiMaggio (Bobby Cannavale), segundo marido de Marilyn, é o "Ex-atleta", Arthur Miller, o terceiro marido, vivido por Adrien Brody, é "o Dramaturgo" e Jonh F. Kennedy (Caspar Philipson) é "O Presidente".

Ana de Armas (Marilyn) e Adrien Brody (Arthur Miller), que é chamado no filme, e no filme, de "O Dramaturgo" - Divulgação - Divulgação
Ana de Armas (Marilyn) e Adrien Brody (Arthur Miller), que é chamado no filme, e no filme, de "O Dramaturgo"
Imagem: Divulgação

Dito isso, 'Blonde" é baseado em uma ficção, mas, claro, há muito de história real na trama. São exatamente estas zonas cinzentas que trazem os momentos mais provocativos do filme, que levou a classificação de para maiores de 17 anos pela Associação de Cinema Americana. Um exemplo é a cena em que ela faz sexo oral no Presidente. A câmera não passa da boca de Marilyn/ Armas, mas a expressão de desgosto dela e a presunção de um ato quase forçado já são suficientes para também causar o mesmo desgosto no espectador. Ponto para Dominik, que claramente quis que sentíssemos o que ela sentiu em décadas tendo sua inteligência subestimada, sofrendo abusos, hiperssexualização e superexposição, para se dizer o mínimo.

Durante o Festival de Veneza 2022 no início do mês, onde o longa teve sua première mundial, Ana de Armas declarou na coletiva de imprensa que "na maior parte do filme Norma Jeane está mais presente" e que esta é uma história sobre Norma. "Claro que Marilyn toma o controle algumas vezes. Ela também está presente porque, quero dizer, são a mesma pessoa. Busquei o equilíbrio de representar as duas e acho que uma alimentava e precisava da outra", completou a atriz.

A atriz Ana de Armas chega para coletiva de imprensa de "Blonde"  no Festival de Veneza - Divulgação - Divulgação
A atriz Ana de Armas chega para coletiva de imprensa de "Blonde" na manhã desta quinta no Festival de Veneza
Imagem: Divulgação

Saber onde uma saía de cena para a outra entrar é óbvio nas sequências de sets, festas, premières. Norma incorpora Marilyn (a propósito uma criação de seu primeiro agente, que escolheu Marilyn por conta da atriz Marilyn Miller e de Norma, que escolheu Monroe por ser o sobrenome de solteira de sua mãe Gladys). Ainda assim, em diversas cenas, como na première de "Os Homens Preferem as Loiras", tanto uma quanto a outra estão presentes e se sentem expostas e/ou vulneráveis.

Já nas cenas de intimidade, em que a vulnerabilidade da personagem domina a tela, é Norma que se vê perdida e assustada. É ela ainda criança que sonha em ser amada e querida depois de sua mãe sofrer uma crise e ser internada em um hospital psiquiátrico. É Norma que passar a sofrer abusos ao ser enviada para um orfanato. É uma jovem Norma que é praticamente forçada a fazer um aborto para não perder trabalhos, é a mesma Norma que encara casamentos violentos e/ou desastrosos, é ela quem entra em colapso após sofrer um outro aborto.

Ana de Armas vive tanto Marilyn quanto Norma Jeane que, na intimidade, se sentia muitas vezes perdida e vulnerável - Divulgação - Divulgação
Ana de Armas vive tanto Marilyn quanto Norma Jeane que, na intimidade, se sentia muitas vezes perdida e vulnerável
Imagem: Divulgação

Entre uma infância traumática, exploração do corpo, da beleza e do psicológico de Norma Jeane, o filme nos conta, com recriação de época impecável, a trajetória de glória, mas principalmente de sofrimento que tanto a anônima Norma quanto a estrela Marilyn traçaram, ora unidas ora separadas por tanta frustração e dor.

A questão dos abortos, das gravidezes e do desejo nunca conquistado de ser mãe é um dos pontos que mais dividiram os críticos em Veneza. Não necessariamente pelos fatos em si, mas pela abordagem que Andrew Dominik dá à presença do filho nunca nascido tanto na narrativa quanto na psique de Marilyn/Norma. Ao ser questionado sobre isso, o diretor se limitou a responder que "está no livro" e era uma parte importante da obra.

Como em cinema (e qualquer arte que conta uma história) o que realmente faz a diferença é o recorte, a abordagem que se faz, "Blonde" nos diz e não nos deixa esquecer em momento algum que a cada momento de prazer, conquista, reconhecimento, alegria, havia toneladas de machismo, traumas, frustração e, obviamente, dor para se dizer o mínimo.

Dor talvez seja a grande palavra do roteiro. Há pouco prazer e alegria em "Blonde". Sobram frustrações, perdas, traumas, lágrimas. Há sempre um clima denso e de perigo iminente no ar, que faz com que o público até se afaste do real, mas nunca consiga embarcar na fábula que muitas vezes as imagens que ficaram cristalizadas no imaginário nos fizeram acreditar. E esta é claramente a intenção do diretor.

Em "Blonde", Ana de Armas transita entre o glamour de Marilyn e os traumas de Norma Jeane  - Divulgação - Divulgação
Em "Blonde", Ana de Armas transita entre o glamour de Marilyn e os traumas de Norma Jeane
Imagem: Divulgação

Em tempos de ressignificação do papel das atrizes não só em Hollywood mas em todo o mundo, além da mudança (bem-vinda) da forma como o cinema retrata o corpo e as histórias femininas, "Blonde" surge como uma obra que humaniza a figura que, de tanto vermos sem de fato conhecer, acabou se desumanizando. É pena que, para isso, haja tão pouco prazer e tanta violência psicológica, moral e também física no caminho.

Ao sublinhar a todo o tempo o quanto ela foi incompreendida, solitária e quão premente foi sua vida desde a infância com uma mãe desequilibrada e um pai inexistente, Dominik pode até fazer jus à história da atriz, mas pesa um tanto demais a mão na forma de nos contar, quase duvidando da capacidade que a sutileza tem de também narrar e denunciar violências. A partir de hoje, o público decide e dialoga com a obra, que tem produção impecável e certamente deve ser lembrada em categorias do Oscar como direção de arte, figurino, cabelo e maquiagem, entre outras.

Ainda que ficção, "Blonde" (livro e filme), como já dito, têm muito do real não só na trajetória de Marilyn como de tantas outras divas do cinema. Parafraseando Rita Hayworth (que disse isso sobre sua personagem Gilda), muitos quiseram ir para a cama (e para o cinema) com Marilyn, mas não queriam acordar com Norma e dar voz, em vez de calar e estereotipar, uma mulher real.

Não por acaso, Ana de Armas, que começa com o longa finalmente a experimentar um pouco do que foi a exposição que Marilyn viveu, comentou em Veneza que o mais aprendeu com o processo e o projeto foi "a ter mais empatia e respeito por atores que se encontram nesta situação e que vivem sob muita pressão da mídia, sobre os danos que isso pode causar a alguém."

"Ninguém está preparado para viver sob esta pressão e expectativas e o que se supõe que se deve fazer e quem se supõe que se deveria ser quando as pessoas projetam em ti o que eles querem", continuou. "Aprendi a entender isso melhor e aprendi, para mim mesma a me proteger melhor, de evitar de me colocar nesta situação. Aprendi que Marilyn era extremamente forte e tentou fazer o melhor que pode", completou a atriz cubana de 34 anos.

De fato. Talvez o público finalmente esteja preparado para ver, apesar do glamour tanto da produção quanto da atriz (que merece ser lembrada no Oscar), um retrato tão angustiante de uma mulher (para além da diva) que, mesmo 60 anos após sua morte, nunca perdeu o brilho.

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