Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mostra SP: Filmes para descobrir e entender a complexa realidade do Irã
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Entre os países que sempre tiveram destaque especial na programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Irã é um deles. Querido pelos cinéfilos, pelo criador e curador Leon Cakoff e por Renata de Almeida, diretora do evento, o cinema iraniano sempre teve janela importante na programação e grandes cineastas como Abbas Kiarostami e Jafar Panahi, entre outros, sempre frequentaram a Mostra SP.
Neste ano, diversos filmes iranianos que passaram por importantes festivais como Cannes, Veneza, Berlim, entre outros, integram a programação do evento. E o momento é mais que oportuno para se conferir o cinema do país. É chavão, mas o cinema é uma das mais eficientes formas de se conhecer o mundo e entrar na vida, na casa das pessoas e nas questões sociopolíticas de um país. Se hoje o mundo tenta entender o que se passa no Irã, que desde a morte da jovem Mahsa Amini, encara a maior onda de protestos realizados contra o governo religioso do país, liderado desde 1989 pelo aiatolá Ali Khamenei, em muito tempo.
Masha Amini morreu em 16 de setembro nas mãos da polícia iraniana depois de ser detida porque "estava usando o hijab (véu) de forma errada", que não cobria toda sua cabeça. Desde então, protestos tomaram as ruas de cidades em todo o país. As mulheres, naturalmente, estão entre os mais indignados e bradam palavras como "Mulher, vida, liberdade" e "Morte ao ditador", referindo-se a Ali Khamenei.
Desde a Revolução Islâmica, em 1979, o país que outrora tinha estilo de vida até consideravelmente modernos e ocidentalizados em relação a outros países do Oriente Médio, viu tudo recrudescer e seus códigos sociais e morais se tornarem cada vez mais rigorosos. Se o desenrolar desta atual onda que nos faz lembrar d Primavera Árabe e preocupa o mundo, atento às consequências dos protestos e do momento político, o cinema há tempos retrata a vida, os costumes e principalmente a vida das mulheres iranianas.
Dos já citados mestres Abbas Kiarostami e Jafar Panahi e o oscarizado Asghar Farhadi (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por "A Separação"), passando por novos nomes como Ali Abassi (do forte "Holy Spider", Palma de Melhor Atriz em Cannes 2022), o cinema iraniano continua vigoroso e nos revelando os conflitos, as contradições, a dureza, mas também as belezas e a riqueza de um país, acima de tudo, fascinante.
Tanto para os iniciados quanto para os que querem descobrir o cinema iraniano, "Além das Paredes" é atração desta sexta-feira, às 14 horas no Reserva Cultural. Retrato engenhoso e duro de uma situação que beira o absurdo, o longa dirigido por Vahid Jalilvand concorreu ao Leão de Ouro do Festival de Veneza 2022.
Na trama, um homem cego está prestes a se suicidar em seu apartamento quando o zelador do prédio o avisa que há uma fugitiva escondida no edifício. Ela, procurada pela polícia que cerca o local, participou, meio sem entender bem a situação, de uma greve na fábrica em que trabalhava. O caos se instalou no local por conta da repressão policial e ela, que havia levado o filho de apenas quatro anos ao evento, perde a criança quando é detida e se desespera. Em meio à confusão, ela se vê em um camburão com outros manifestantes, um grave acidente acontece e ela foge.
É no apartamento deste cego, Ali, que ela se refugia e uma relação de amizade começa. Mas a trama, que até então parece ser realista até demais ao retratar o quanto a polícia iraniana é repressora e violenta, contém pontos de fantasia que o espectador se pergunta se são reais ou se são delírios. Aos poucos, vai se entendendo o universo de Ali ao mesmo tempo em que se entende também que qualquer um que ouse questionar as estruturas do poder do Irã corre risco real de morte.
"Além das Paredes", ainda que tenha algumas questões, é um filme que literalmente nos faz enxergar além destas estruturas sociais que são tidas como incontestáveis e imutáveis, mas que podem ruir com a força da mobilização popular. Talvez por isso (ou justamente por isso) é que o código moral, a estrutura patriarcal, a polícia moral e a polícia militarizada tenham se tornado cada vez mais rígidos no país.
O filme tem sua última sessão no Cine Marquise no dia 1 de novembro, às 16 horas.
A repressão policial é, não por acaso, um denominador comum do cinema iraniano e ganha destaque nos filmes em cartaz na Mostra SP 2022, mas é a repressão de fora das telas que ronda "Sem Ursos", do veterano Jafar Panahi, que desde de julho deste ano está preso.
O longa levou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza, em setembro, e, na sessão de première mundial, no lugar de Panahi, havia uma cadeira vazia com seu nome escrito. Houve protestos da classe cinematográfica por sua libertação e muitos discursos em apoio a um dos cineastas mais importantes do país e do mundo.
"Sem Ursos", que tem sessão neste sábado, 29, às 15h40 no Cine Marquise, foi obviamente realizado quando o cineasta ainda estava em liberdade, mas ainda sim secretamente, pois há anos Panahi está proibido de filmar. Ainda assim, ele continuou resistindo e filmando.
Não por acaso, é o próprio Panahi que protagoniza o filme, em que duas tramas correm em paralelo. Em uma delas, um cineasta está meio exilado, longe da capital Teerã, em uma pequena e conservadora cidade próxima da fronteira com a Turquia.
Ele dirige, por Zoom, um filme que se passa justamente do outro lado da fronteira e que conta a história deste casal iraniano refugiado na Turquia que precisa conseguir passaportes verdadeiros roubados de turistas europeus (e manipulá-los) para conseguir fugir para a Europa. Ele, Bakhtiar (Bakhtiar Panjei) consegue um passaporte francês para ela, mas não para si. Ela, Zara (Kavani), recusa-se a partir sem ele.
Já na pequena vila, Panahi tem uma pequena câmera com a qual registra cenas do cotidiano. Ele acaba captando a uma cena de encontro entre dois jovens que estão proibidos de se verem (a garota está prometida para outro).
O pai e as autoridades locais exigem que o cineasta mostre a foto para provar que os jovens se encontraram e se a família e o noivo foram desonrados ou não. Ele se recusa e nega que a foto exista. Tudo se complica. São imensas as distâncias entre a visão mais liberal e contemporânea do cineasta e os costumes arcaicos do vilarejo, o que revela que há muitos Irãs dentro do mesmo país de cerca de 90 milhões de pessoas
Do outro lado da fronteira, as filmagens seguem e entendemos que o casal de atores é também um casal na vida real, refugiado, fugindo do terror que viveu no Irã e que enfrenta de fato o drama de não conseguirem passaportes para os dois no mesmo momento.
Quem acompanha o cinema de Panahi sabe que ele, apesar de sempre revelar a dureza de seu país, a contradição de sua sociedade e a dura batalha contra a moralidade opressora e o conservadorismo, sempre o faz com uma boa dose de humor e até otimismo. Mas "Sem Ursos" (título que remete ao quanto boatos, crendices e mentiras podem nos induzir ao medo) traz um olhar mais melancólico e até sombrio.
É compreensível, ainda que tenha sido filmado antes da atual crise, e, obviamente, antes de ser preso em último 12 de julho e condenado a seis anos de prisão (por defender outro cineasta que também havia sido preso), o país já vivia tempos conturbados em que uma crise econômica e a pesada atmosfera de controle e repressão aos críticos do poder se recrudesciam.
Mesmo em seu histórico de prisões, prisões domiciliares, proibições de filmar, censura, Panahi sempre encontrou uma forma de continuar nos contando histórias de seu país, mesmo correndo riscos. Ao final de "Sem Ursos", além da revolta, fica a dúvida e o desejo de que a atual onda de protestos também sirva para que ele e outros artistas ganhem finalmente a liberdade.
O filme tem sessões ainda nos dias 30, domingo, às 16h10 no Itaú Frei Caneca, e dia 2 de novembro, às 14 horas, no Reserva Cultural.
Vencedor do Prêmio da Crítica (Fipresci) no Festival de Cannes 2022, "Os Irmãos de Leila" é um dos filmes que melhor revelam o cotidiano, as dinâmicas de poder em família, o machismo arraigado e a hipocrisia disfarçada de moralidade de uma sociedade repleta de contradições.
Na trama, dirigida por Saed Roustayi, Leila é a única mulher de uma família de quatro irmãos. Em meio a uma vida de classe média baixa em que perder o emprego significa estar em real perigo, ela se vê chegar aos 40 anos solteira e sem poder contar com nenhum irmão (cada um mais problemático, fracassado e/ou golpista que o outro) e nem mesmo com o pai, um idoso que põe em risco a única pequena riqueza (uma relíquía de família) que eles possuem para conseguir se tornar o "patriarca" de seu clã, a mais alta honraria segundo a tradição persa.
Interpretada brilhantemente por Taraneh Alidoosti (de "O Apartamento", de Ashgar Farhadi), Leila tem a ideia de abrir um negócio e conseguir, finalmente, com a ajuda dos irmãos, tirar a família da pobreza. Mas para isso, precisa de dinheiro. Enquanto tenta de todas formas conseguir este financiamento, ela descobre os planos do pai. Leila é a única sensata de uma família de homens inertes, mas tem de encarar o machismo atávico de sua própria família para conseguir provar que seu plano é bom e que pode funcionar. E meio a uma dinâmica incessante de diálogos cortantes, entramos nas vidas de cada um deles e entendemos como os laços de amor e tradição podem se romper diante do caos que vai se instalando a cada tentativa frustrada de Leila para conseguir apoio. "Os Irmãos de Leila" é um drama familiar de primeira, mas exige entrega do espectador que encara quase três horas de discussões e uma câmera que não para nunca.
O filme tem sessão neste sábado, 29, às 20 horas, na Cinemateca Brasileira.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.