Topo

Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com humor e ironia, 'Carvão' retrata a hipocrisia do brasileiro

Colunista do UOL

31/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Carvão", longa de estreia de Carolina Markowicz, tem sessão nesta segunda na Mostra SP e chega aos cinemas do Brasil todo na quinta, dia 3. É um filme oportuno em vários sentidos. Primeiramente porque é a estreia de uma diretora jovem, que tem carreira já de sucesso nos curtas-metragens e que traz um olhar instigante sobre as dinâmicas da sociedade brasileiras.

Em segundo lugar, porque a nova geração de cineastas que têm filmado seus primeiros longas ampliam cada vez mais os temas , os olhares e as formas de contar histórias.

Em terceiro lugar, porque "Carvão" é, toscamente falando, "puro suco de Brasil". Em uma semana em que ainda estamos processando os feitos e efeitos da eleição mais tensas dos últimos tempos, em que as dinâmicas das famílias, das instâncias públicas e das associações religiosas foram duramente postas à prova, "Carvão" escancara, com humor e ironia fina, nossa hipocrisia estrutural.

O filme, que já passou pelos festivais de San Sebástian na Espanha e no Festival de Toronto, tem uma trama aparentemente comum, sobre o cotidiano de uma família do interior de São Paulo que tem uma pequena carvoaria, mas traz nas suas entrelinhas o humor necessário para lidar com as tantas situações absurdas que só quem vive no Brasil entende.

O moralismo, a hipocrisia, a luta para sobreviver em um cenário duro e pobre ganham ares de comédia do absurdo com um quê que beira o sombrio em uma trama que envolve assassinato, ocultação de cadáveres e crime organizado.

O filme já passou também pelo Festival do Rio, onde venceu os prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Direção de Arte. Na Mostra, estreou em sessão gratuita no vão livre do Masp, "sala" nobre do evento, que sempre abriga filmes que têm diálogo interessante com o público.

A julgar pelo seu cenário, pode-se deduzir precocemente que "Carvão" vai nos contar uma conta uma história até mesmo ingênua, sobre a dura, mas também bela, vida no campo. O ambiente humilde da casa de Irene (Maeve Jenkins), que cria galinhas para vender aos vizinhos, de seu marido ( Rômulo Braga), que, quando não está alcoolizado, comanda a pequena carvoaria da família, e do filho deles de nove ano, Jean.

Interpretado pelo genial Jean Costa, o garoto funciona como a consciência diante da normalização de absurdos que só pioram a cada sequência. Ao questionar as decisões dos pais com a inocência infantil, ele nos faz rir, mas também questionar em que momento suspendemos o bom senso em prol de conseguir o que se quer a todo custo. Para completar a família, o pai de Irene vive inválido numa cama há quase dez anos.

Irene está visivelmente exausta. Ela é bonita, mas a brutalidade de uma vida difícil, quase miserável, a tornou dura, mal-humorada, quase cínica. Ela não conta com a ajuda do marido também bruto e ausente e não vê muita perspectiva em mudar de via.

Um belo dia (na verdade logo na primeira sequência da trama), uma oferta para que eles em casa um homem estrangeiro misterioso, em troca de um bom dinheiro, muda toda a suposta equilibrada vida desta família tão brasileira. Vivido por Cesar Bordón, este homem, um mafioso, é o gatilho para que as contradições comecem a ser uma a uma desmascaradas.

Qual a medida da hipocrisia? Quando fazer de conta que não foi nada em troca de um jeitinho que vai "resolver a vida"? Acima de tudo, a família, mas junto com ela, religião, moralidade, machismo e, claro, hipocrisia. Aliás, acrescente a esta receita, o crime.

Tudo vai se desenrolando sem muito alarde, como numa boa comédia do absurdo. Um jeitinho leva a outro. Uma hipocrisia puxa a outra. E assim já não se sabe mais onde que a bola de neve do caos começou a se formar. É trágico, mas Carolina Markowicz tem a sagacidade de dosar drama, e humor. Ao final, rimos de nós mesmos, das nossas sombras, das nossas hipocrisias, mesmo que nunca chegemos a extremos, a sombra ronda cada um de nós, cada família.

"Carvão", como já dito, chega em hora mais que oportuna e merece fazer carreira longa e ser visto, principalmente, pela tradicional família brasileira.

Confira entrevista de Carolina e Maeve deram a esta colunista no vídeo acima.