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A revolução de "Paloma", uma transexual que ousa sonhar em casar na igreja
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"Paloma", do diretor Marcelo Gomes, estrelado por Kika Sena, estreia nos cinemas de todo o Brasil nesta quinta. A história parte de uma premissa que, a um primeiro olhar, poderia ser clichê e até simplória: Paloma, uma mulher que trabalha como agricultora no sertão de Pernambuco sonha em se casar na igreja católica com seu namorado, com quem ela já vive e com quem cria uma filha de sete anos.
Se "Paloma" fosse uma comédia romântica, por exemplo, o grande conflito da personagem poderia ser a falta de dinheiro para fazer uma festa, uma briga súbita com o namorado ou até mesmo uma doença repentina que põe os planos a perder. Tramas que já foram exploradas e se repetem à exaustão envolvendo heroínas românticas já vimos aos montes no cinema internacional e até no brasileiro. Então, o que faz de "Paloma" um filme único? Além de o fato de a heroína ser uma agricultora do sertão pernambucano, o que já tira a trama do eixo convencional, ela é uma mulher transexual.
No país que, como afirmou ao UOL Splash, o diretor Marcelo Gomes, "mais promove violência contra a comunidade LGBTQIA+ do mundo", contar uma história de amor, afeto, de uma jovem trans que sonha com o mais banal dos sonhos românticos é também um ato revolucionário. Não por acaso, "Paloma" levou o Troféu Redentor, o principal do Festival do Rio 2022, e Kika Sena se tornou a primeira atriz transexual a receber o Redentor de Melhor Atriz.
Se sonhos de casamentos já foram centenas de vezes explorados no cinema, histórias de violência e/ou preconceito contra personagens trans também. A lista é extensa e até mesmo "Uma Mulher Fantástica", do chileno Sebastián Lelio, recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2018, o primeiro filme estrelado por uma atriz trans (Daniela Vega) a levar um Oscar.
Como também disse Marcelo, citando o educar Paulo Freire, contar uma história de esperança em um país como o Brasil é um ato revolucionário. E de fato o cinema brasileiro tem nos dado outras histórias de delicadezas como "Deserto Particular" (de Aly Muritiba). Mas casar na igreja, ser uma personagem ingênua, revolucionária em sua ética poética, faz de Paloma uma personagem única no nosso cinema.
Ela, em uma cena quando o padre da cidade se nega a casá-la porque o mundo mudou muito mas a Igreja não, afirma, com doçura, mas firmeza, que também é uma criatura de Deus. É a normalidade, a naturalidade de sua própria existência que Paloma defende. Sendo normal e, banal até, uma mulher comum, porque ter negado seu sonho básico de casar de véu, grinalda, ser princesa por um dia e viver seu amor romântico?
Às trans e aos trans é dado o direito de até existir sob uma certa vista grossa da sociedade hipócrita da pequena cidade (e das grandes também), mas ter o "papel passado" na cara dessa sociedade de que se é sim um cidadão como qualquer outro, aí já afrontoso demais.
Por que gastar parágrafos e hora discutindo uma premissa tão básica ao analisar "Paloma"? Porque, incrivelmente, até mesmo críticos e profissionais LGBTQ) chegam a duvidar da verossimilhança dela e da trama construída por Marcelo Gomes, Armando Praça e Gustavo Campos. Detalhe importante é que a ideia para o filme partiu de uma notícia que o diretor leu há dez anos sobre uma trans que provocou a ira de uma pequena cidade pernambucana quando decidiu se casar de véu e grinalda.
Nestes dez anos, Marcelo, que ganhou o mundo com "Cinema, Aspirinas e Urubus" em 2005 e integrou o Festival de Cannes, dirigiu longas como "Era Uma Vez Eu Verônica" (2012), que levou sete prêmios no Festival de Brasília. "O homem das multidões" (2013), codirigido com Cao Guimarães, selecionado para a mostra Panorama do Festival de Berlim. Seu longa de ficção mais recente, "Joaquim" (2017), integrou a mostra competitiva do Festival de Berlim. O documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar" estreou nos cinemas em 2019 e ganhou diversos prêmios, como os de Melhor Documentário e Melhor Montagem, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.
Nestes anos, o diretor pernambucano apurou seu estilo, sua mão de diretor e construiu uma rede de colaboradores que fazem de "Paloma" um filme de cinema. Do roteiro à direção de arte, passando pelo elenco e pela fotografia, tudo é leve, mas certeiro. Os tempos são certos, com respiro para que se contemplem os personagens, o mundo em que eles vivem e o próprio tempo de cada um. Os diálogos são afiados, mas naturais, numa linha de direção que tem poesia mas não tira jamais o pé do chão deste Brasil preconceituoso e contraditório.
Mas é na decisão de centrar em Kika Sena e, principalmente, em seu olhar, que está a grande força do filme. Em um debate realizado no Festival de Cinema de Gostoso (no RN, no início desta semana), a atriz falou sobre como foi o processo de testes para o papel. "Eu tive de provar que tinha capacidade para viver a personagem, mas, como disse o Marcelo, foi uma escolha que passou também pelo sentimento, pelo instinto dele, que sentiu que eram os olhos, os meus olhos, o olhar, a força da personagem", contou Kika, que é arte-educadora, diretora teatral, atriz, poeta e performer.
A direção de fotografia de Pierre de Kerchove aproveita e valoriza a paisagem natural do sertão pernambucano, da lavoura de mamão em que Paloma trabalha, das ruas simples da cidade, mas é a paisagem do rosto da personagem, e de Kika, a que nos faz adentrar no universo particular de uma mulher sonhadora, mas resiliente e forte. Paloma pode parecer apenas ingênua ao sonhar se casar, ao mandar uma carta para o Papa pedindo autorização para tal, mesmo sem saber escrever, ao buscar um padre nada ortodoxo disposto a realizar a cerimônia. Mas é justamente sua teimosia, seu olhar que carrega também tanta doçura e dor, que faz a trama avançar, que afronta até mesmo a passividade de Zé (Ridson Reis em ótima performance). Ele é pedreiro, vive em um ambiente bruto, mas não é brutalizado. Ele esconde dos colegas de trabalho quem é sua mulher, pois está resignado com seu lugar à sombra. Ela não.
Ela não quer casar escondida no meio do mato, ela tem fé, faz romaria para Juazeiro com a amiga (Suzy Lopes sempre incrível), mas também se aventura, não se distancia das amigas trans e sua rede de afeto. Paloma é, como o filme, simples, mas mais simplória.
É na naturalidade, que pode até soar não natural, que reside a maior foca deste filme. Mas Kika aponta mais um ponto crucial para a força de Paloma. Como disse a atriz em entrevista ao UOL (video acima), não nos esqueçamos que ela também é uma mulher negra. Kika escreveu um poema que diz que "teimosia é nome de memória preta." Para ela, é importante dizer que Paloma é uma mulher preta porque acho que a gente às vezes fica só no lugar da transexualidade, da travestilidade. Mas é um casal de pessoas pretas e os dois são teimosos. E a gente preta, a gente que é preta é muito teimosa. Se não fosse teimosia, a gente não teria avançado em políticas. A teimosia de Paloma é um exemplo de avanço de políticas públicas. Hoje a gente pode casar. Na igreja, onde quiser, em qualquer lugar, se a gente quiser casar", comentou Kika.
"Esse poema meu que diz que teimosia é nome de memória preta, que é sobre memória, sobre ancestralidade que Paloma traz ali. Por mais que ela se apegue muito na fé católica, ela também faz referência a Iemanjá. É memória preta de de nossos ancestrais que foram apagadas e transformadas em outras coisas. É importante eu sentir agora de dizer. Ainda não tinha falado sobre esse lugar da pretitude dela e de Zé, que está tão naturalizada na relação com os amigos, com a família, que a gente por vezes foca apenas nesse lugar de opressão pela travestilidade e pela transexualidade, quando também há uma opressão ali que o acesso para uma pessoa preta é é diferente do acesso para uma pessoa branca. Imagina sendo uma travesti preta. Então é isso. Essa teimosia é a fé em si mesma", completou Kika, que traz nesta análise a experiência de quem é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe.
Desde 2015, ela também realiza pesquisas relacionadas à área de voz e palavra em performance com cunho político referente ao corpo da mulher trans e travesti na cena teatral e social brasileira. Esta formação de Kika também revela o quanto ela mesma procurou em Paloma um empoderamento que não fosse o da análise racional e/ou intelectual, nem o do conflito ou da militância necessariamente política. Foi justamente ao se colocar no lugar da personagem, que nem mesmo sabe ler e escrever, com toda sua fé, ingenuidade e ética instintiva, que Kika encontrou a legitimidade do desejo e da forma de estar no mundo de Paloma.
É exatamente este convite a se despojar de suas armaduras intelectualizadas, racionalizadas, "pré-conceitos" e incredulidade que "Paloma", o filme, nos faz. Ela é, antes de tudo, romântica, mas jamais ingênua. Sua luta para ser apenas feliz e seu afeto são legítimos, profundos e emocionantes.
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