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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No duro, mas tocante, "A Mãe" Marcélia Cartaxo busca filho desaparecido

Colunista do UOL

14/11/2022 04h00

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"A Mãe" não é o primeiro filme de Cristiano Burlan, mas é, como ele mesmo gosta de comentar, seu primeiro filme de ficção realizado com mais estrutura, com orçamento enxuto, mas que permitiu que ele contasse a história que queria contar e com distribuição em circuito nacional em salas do Brasil todo. Ao todo, entre concepção, desenvolvimento e captação de recursos, foram sete anos de trabalho. E o resultado se vê na tela, em um filme maduro, duro, contido, mas, acima de tudo, emocionante.

Não por acaso, o longa recebeu os Kikitos de Melhor Direção para Burlan, Melhor Atriz para Marcélia Cartaxo (a Mãe) e Melhor Desenho de Som para Ricardo Zollner. Em um ano em que outros ótimos filmes, como "Marte Um", de Gabriel Martins, e "Noites Alienígenas", de Sérgio de Carvalho (que levou o Kikito de Melhor Filme, entre outros), o prêmio de melhor diretor valoriza uma carreira que inclui mais de 20 filmes feitos, como se fala, na guerrilha, na força muitas vezes da urgência de se contar histórias que em geral não chegam às telas.

Cristiano, aliás, é sempre lembrado por sua Trilogia do Luto, série de documentários em que retrata, de forma autoral mas muito universal, as mortes de seu pai, seu irmão e sua mãe, todas envolvendo violência e um certo abandono das vidas de quem nasce, cresce e vive nas periferias do Brasil. Os três filmes são "Construção", "Mataram meu irmão" e "Elegia de um crime".

Todos, de certa forma, também estão em "A Mãe", que traz Marcélia no papel de Maria, uma mulher que procura seu filho Valdo (o ótimo rapper e ator Dunstin Farias), que pode ter sido assassinado por policiais militares durante uma ação no bairro da periferia extrema de São Paulo, onde moram.

Entre a dúvida e o desespero diante da perda desse filho, ela embarca numa jornada de dor mas também de descoberta de outras mães que, como ela, lutam para ter o direito de, pelo menos, enterrar seus filhos, muitas vezes vítimas da própria polícia.

O rapper e ator Dunstin Farias (ao centro) é Valdo, filho que desaparece sem deixar vestígios em "A Mãe" - Divulgação - Divulgação
O rapper e ator Dunstin Farias (ao centro) é Valdo, filho que desaparece sem deixar vestígios em "A Mãe"
Imagem: Divulgação

Para encontrar Valdo, Maria precisa enfrentar a burocracia opressora das grandes metrópoles e a indiferença de um poder público que, em geral, despreza e ignora quem mais precisa. Vendedora ambulante que viaja todos os dias do Jardim Romano, na fronteira entre o quase rural e o urbano, ao Centro, onde vende seus produtos, ela está acostumada com longas jornadas e não vai desistir nem mesmo diante das ameaças tanto da polícia quanto do crime local.

Como bem afirmou Burlan em entrevista ao Splash UOL (no vídeo acima), "A Mãe" tem muito de "Antígona", da Trilogia Tebana, de Sófocles, que lutou pelo direito de enterrar seu próprio irmão, tem muito de "Mãe Coragem e seus filhos", que alemão Bertolt Brecht escreveu em 1941 com colaboração de Margarete Seffin (1908-1941). "Ela é também as Mães de Maio, que enfrentaram a mão pesada do Estado quando, em 2006, a Polícia Militar, em represália ao PCC, matou quase 500 jovens na periferia de São Paulo e muitos destes crimes não foram investigados. E ela também é minha mãe, Isabel Burlan da Silva, que teve o filho assassinado, crime comandado por uma quadrilha de policiais, em 2001, no Capão Redondo, crime este nunca investigado", completa Burlan.

De fato, "A Mãe" tem muito das milhares de mães brasileiras que perdem seus filhos para o genocídio sistemático que ocorre nas periferias de todo o País. Como bem observa o diretor, nunca deve ser e nunca vai ser natural uma mãe enterrar o próprio filho. "Maria é muitas mães brasileiras periféricas atravessadas pela letalidade da Polícia Militar e pelo terrorismo de Estado."

Maria também a força destas mães. É preciso força, resiliência e dureza para não sucumbir ao desespero que estas mães enfrentam. É também muito por isso que a escolha de Burlan foi seguir o caminho da sobriedade. Marcélia traz no rosto toda esta dor de quem sempre foi invisível e continua sendo, mesmo diante da maior dor de todas. Ela carrega também o silêncio, a envergadura resiliente de que sabe que não pode sucumbir sob o risco de desabar de vez.

Marcélia Cartaxo vive Maria em "A Mãe", papel que o diretor Cristiano Burlan e a roteirista Ana Carolina Marino escreveram pensando na atriz - Divulgação - Divulgação
Marcélia Cartaxo vive Maria em "A Mãe", papel que o diretor Cristiano Burlan e a roteirista Ana Carolina Marino escreveram pensando na atriz
Imagem: Divulgação

A direção de Burlan encontra este equilíbrio entre retratar a saga incansável desta mãe, deixar transparecer seu cansaço, mas também jamais despencar para o melodrama. É trágico o destino de Maria e, por isso, sóbrio e contido.

Mesmo assim, é impossível não se emocionar, principalmente com os encontros que Marcélia/ Maria tem com as mães reais que perderam seus filhos para a violência. Mulheres como a Débora Silva, líder do grupo Mães de Maio, movimento que luta pelo direito de enterrarem seus filhos e por justiça.

Como comentou o diretor, o Mães de Maio nasceu em 2006, depois que cerca de 500 pessoas (entre muitos, jovens da periferia paulistana) morreram nas operações da PM em reação aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), quando a polícia foi atrás dos comandantes desses ataques.

Burlan observa que a ficção muitas vezes não dá conta da realidade. Mas é justamente no encontro, e no atrito, entre a realidade dessas mães e a ficção, criada por ele e por toda equipe do filme, que mora a grande força de "A Mãe".

Se ter estrutura financeira e uma equipe maior permite uma produção mais robusta, a grande escolha ética e estética de um filme independem de seu orçamento. E estas escolhas são muito bem acertadas em "A Mãe", a começar por escrever (parceria de Burlan e Ana Carolina Marino) o roteiro já pensando em Marcélia Cartaxo, nossa eterna e Macabéa, a heroína ingênua e romântica de "A Hora da Estrela", (longa de Suzana Amaral, de 1985, pelo qual Marcélia levou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim".

Mais de 30 anos depois, o Brasil contemporâneo continua um país inóspito e míope diante da beleza e da tristeza de Macabéa e de Maria.