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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na batida do rap, documentário conta história e a revolução dos Racionais

Colunista do UOL

16/11/2022 14h06

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"O Racionais faz algum trabalho social?", pergunta o apresentador de uma rádio em uma das tantas (e geniais) imagens de arquivo de "Racionais - Das Ruas de São Paulo pro Mundo", de Juliana Vicente, que estreia hoje na Netflix. "Tá aqui ó: este é o trabalho social. A música que entra na mente, que muda a atitude das pessoas", responde um jovem KL Jay mostrando o CD novo do grupo de rap que revolucionou a história não só da música, mas da juventude brasileira nos anos 1980, 90 e para sempre.

Pode parecer exagero, mas há um antes e depois dos Racionais, principalmente quando se fala de música urbana e de protesto que reflete as aflições, anseios, paixões, revoltas e frustrações dos jovens do País.

De uma perspectiva de quem, como esta que escreve este texto, nasceu e cresceu na periferia de São Paulo justamente entre o final da década de 1980 e chegou à adolescência nos anos 1990, o "depois" dos Racionais MCs surgirem foi uma catarse coletiva jamais vista nas quebradas. Foi o surgimento de uma voz, uma melodia, um movimento, um pensamento que traduzia a inquietação de quem tinha energia de sobra para lutar, mas pouco espaço para crescer, movimentar, questionar o sistema de poder e de valores que mantinha cativos os milhares de jovens periféricos (em sua imensa maioria negros e negras) em uma lógica racista, classista e injusta.

Racionais MCs nasceu no final dos anos 1980 para revolucionar a música brasileira  - Divulgação - Divulgação
Racionais MCs nasceu no final dos anos 1980 para revolucionar a música brasileira
Imagem: Divulgação

"Fim de Semana no Parque", de 1993 (do álbum Raio X do Brasil), foi um hino cantado a plenos pulmões por milhares de adolescentes e jovens que queriam aproveitar as benesses de um simplório fim-de-semana em família, com consumo, segurança, alegria. No filme, a sequência do show que revela o público em catarse cantando "Olha só aquele clube que da hora. Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora" é de arrepiar. Não por acaso, entre mais de 500 VHS com imagens de arquivo, além de material digital, esta é a cena que ainda hoje mais emociona a diretora. "Eu entendi tanta coisa. Entendi a energia quando eles tinham acabado de chegar, porque não foi algo que eu vi, pois não vivi e não tinha nem idade. Até hoje quando eu vejo, fico emocionada. É muito especial", contou Juliana.

É essa energia, essa eletricidade gerada com o surgimento dos Racionais MCs que o documentário procura refletir, retratar, relembrar, mas não, sabiamente, reproduzir. É impossível reproduzir a energia que um show ao vivo do grupo emana. No entanto, contar a história dos quatro garotos abandonados por um sistema que os inviabilizava, violentava e esquecia é tarefa que o filme cumpre lindamente.

A estrutura é clássica. Pesquisa cuidadosa, imagens de arquivo (muitas! para nossa alegria!), entrevistas, montagem ágil, trilha sonora, claro, certeira. E um dispositivo interessante: Ice Blue, Mano Borwn, KL Jay e Edi Rock se reúnem em um estúdio decorado à la Chicago, meio "Bons Companheiros", para não só dar entrevistas mas também lembrar de histórias memoráveis, tanto engraçadas quanto dramáticas e até trágicas.

Juliana Vicente passou dez anos documentando os Racionais e filmou também a turnê de 25 anos do grupo - Divulgação - Divulgação
Juliana Vicente passou dez anos documentando os Racionais e filmou também a turnê de 25 anos do grupo
Imagem: Divulgação

Juliana contou em conversa com o Podcast Plano Geral que houve duas etapas de entrevistas. A primeira surgiu e foi realizada na própria produtora do filme, a Preta Portê (fundada por ela), depois que a diretora passou meses documentando a turnê de 25 anos dos Racionais. "Acompanhei a turnê de 25 anos filmando, editando, fazendo tudo. Até camiseta, no show de Belo Horizonte, eu vendi. Foi esta mistura assim. Então, eu já tinha um espaço de trânsito. No início era só uma filmagem dos 25 anos. A Eliane (Dias, esposa de Mano Brown) queria muito fazer um DVD. A gente montou, mas não rolou. E eu queria falar sobre a turnê, mas não era o material que eu queria fazer. Eu queria entrevistá-los e, então, eles todos toparam. As primeiras entrevista foram feitas neste contexto", contou Juliana.

De fato a proximidade e a confiança entre diretora e os Racionais é crucial para que o papo flua, as conversas sejam naturais e haja a sinceridade necessária para revelar momentos de dor, desafios e até tristeza, mas também pontos de força, como a infância em um bairro quase rural, a presença das mães de Edi Rock ( que emprestava a casa para eles ensaiarem), Mano Brown (dona Ana, sempre tão presente), Ice Blue, as conexões estabelecidas e a infância entre a pobreza material e a riqueza de cultural, da música que os cercava, tanto no samba, na música black quanto nos cultos de candomblé que as mães frequentavam. As raízes dos Racionais são muito bem fincadas e, muito por isso, fortes.

A presença de outros entrevistados é econômica, pontuando uma trajetória realmente de cinema. Em primeiro plano, a história de revolta, levante, questionamento que os quatro integrantes tinham em uma juventude em que era preciso levar mais de uma hora e meia do Capão Redondo (Zona Sul da capital paulista) ou da Zona Norte até o Centro da cidade, para, em uma meca do movimento negro, encontrarem sua turma, seus pares em gostos, cultural, estilo, identidade.

Cena de "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo", de Juliana Vicente - Divulgação - Divulgação
Cena de "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo", de Juliana Vicente
Imagem: Divulgação

Para além do movimento social e político (sim, o serviço social que KL Jay bem pontuou) dos Racionais MC's, está o talento musical. A curiosidade, o interesse, a pesquisa, a busca por batidas, beats, referências na música brasileira (como Jorge Benjor) e internacional ( Public Enemy e tantos outros) fizeram com que todos os caminhos dos quatro jovens levassem a uma combinação única. Ideias e letras que traduziam e inspiraram a revolta legítima diante dos absurdos de um País escravocrata e cruel, batidas que chacoalharam os corpos, corações e mentes, a voz potente de Brown (e também de Blue, KL Jay e Edi Rock).

Não há outro grupo como os Racionais no Brasil. Ao mesmo tempo, eles abriram caminho para tantos outros (como Dexter, também citado), apostaram em novos talentos e em novos projetos. Ganharam, como diz o nome do filme, o mundo, mas jamais saíram de suas quebradas. Como afirma Brown ao final, o movimento é o contrário. O movimento é sempre voltar para a base, nunca se distanciar de suas raízes, origens, cultura, famílias, sejam elas de sangue ou de bairro, de luta.

É impossível assistir a "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo" sem sair inspirado, indignado com um país que, 30 anos depois do surgimento da banda, ainda exclui, criminaliza e julga sua juventude periférica. Um Brasil em que uma boa parcela dela associa as comunidades e periferias ao crime precisa, literalmente, ouvir Racionais.

Ouvir e conhecer melhor a trajetória de Brown, entender que, assim como milhões de brasileiros, ele cresceu sem a presença do pai, e a falta que isso fez, a presença forte de sua mãe, Ana, (rainha!), a força que o apoio dela e das mães e mulheres deram aos quatro é crucial para entender a história de milhões de mães das periferias do Brasil.

Entender que Ice Blue queria ter, e tem, direito legítimo de comprar um carro da hora, um tênis da hora, com o dinheiro que ganhou trabalhando muito é entender também os anseios da juventude de hoje do Brasil.

Mano Brown - do Capão Redondo para o questionamento de um sistema racista e classista  - Divulgação - Divulgação
Mano Brown - do Capão Redondo para o questionamento de um sistema racista e classista
Imagem: Divulgação

Compreender que, mesmo (ou talvez principalmente) ao se tornarem famosos, os Racionais se tornaram perigosos. O perigo? Despertar a insurreição legítima dos milhões de jovens oprimidos nas ruas, favelas, comunidades, periferias, amortecidos muitas vezes com a violência que lhes é imposta e que se torna cotidiana.

Ouvir e ver os quatro Racionais relembrarem suas trajetórias, sua ascensão e o respeito que sempre tiveram por suas carreiras, sua privacidade e sua própria história (sempre foi quase impossível para a grande mídia fazer uma entrevista com eles) é um prazer para qualquer espectador interessado não só na história do grupo, mas, mais uma vez, do Brasil contemporâneo.

Há um movimento legítimo e contínuo de tomada do lugar que é de direito da população negra e periférica do Brasil. Este movimento não vai parar e sua trilha sonora passa, necessariamente, pela música dos Racionais. E agora, pelo filme. Que seja o primeiro de vários, pois há ainda muitas histórias a serem contadas e o documentário de Juliana Vicente deixa a vontade de saber, ver e ouvir mais.