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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Nova série prova que Lars Von Trier continua sarcástico e genial

 A atriz Bodil Jørgensen vive a sonâmbula Karen em "The Kingdom Exodus" - Divulgação
A atriz Bodil Jørgensen vive a sonâmbula Karen em "The Kingdom Exodus" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

27/11/2022 04h00

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Depois de passar pelo Festival de Veneza 2022, "The Kingdom Exodus", nova temporada da série criada pelo sempre polêmico Lars Von Trier, estreia hoje na plataforma Mubi e traz de volta um dos diretores mais polêmicos, inventivos e sarcásticos do cinema contemporâneo. Na verdade, esta é a terceira, e última, temporada de um projeto que o cineasta dinamarquês começou nos anos 90, no auge do movimento Dogma 95, que chacoalhou o cinema da época e influencia o audiovisual até hoje.

Com o lançamento de um episódio inédito por semana, "The Kingdom Exodus" continua e encerra a saga do hospital The Kingdom (O Reino), que existe de fato e é um dos mais importantes da Dinamarca. Construído sobre antigas lagoas onde os moradores de Copenhague costumavam lavar e clarear suas roupas, o hospital, na trama escrita por Lars, abriga seres misteriosos. Por conta de fatos estranhos que ocorrem na ala de neurocirurgia do The Kingdom, médicos, enfermeiros e demais funcionários acreditam que o hospital é mal-assombrado.

Se hospitais muitas vezes são vistos e sentidos como portais entre a vida e a morte, o The Kingdom é a expressão máxima deste limiar. O mal criou raízes ali e a medicina encara diariamente não só os desafios que um grande hospital enfrenta, mas também as contradições humanas de um lugar que devia acolher e cuidar, mas que também é palco de todo tipo de vaidade, jogos de poder e até violência.

Primeira temporada de "The Kingdom", de 1995, já trazia o mix de terror e terrir que dá o tom à série - Divulgação  - Divulgação
Primeira temporada de "The Kingdom", de 1995, já trazia o mix de terror e terrir que dá o tom à série
Imagem: Divulgação

Nas duas primeiras temporadas, rodadas em 1995 e 1997, entramos nesta ala de neurocirurgia, acompanhamos as reuniões dos médicos e médicas, que muitas vezes tomam decisões mais baseadas em suas teimosias e vaidades que por altruísmo. Vemos também os casos complicados que a equipe médica tem de ao menos tentar resolver, além de descobrirmos os casos, relacionamentos, desentendimentos, birras e jogos de poder entre médicos, enfermeiros e até pacientes.

Tudo isso com o estilo despojado, câmera na mão, pouquíssima iluminação (na verdade, somente a natural), tomadas feitas no calor da ação e sem ensaio prévio dos atores. Há uma naturalidade e um nervosismo no ar, que é intrínseco ao próprio estilo Dogma, com a câmera inquieta e um olhar sempre cético para a realidade retratada. Lars manteve tudo isso nesta terceira temporada, mas, 25 anos depois, também a atualizou. Mantendo o estilo, a narrativa é fragmentada, os cortes das cenas são abruptos, os tempos muitas vezes desencontrados, dando sempre a sensação de que vemos partes mas jamais o todo deste quebra-cabeças.

Há também sarcasmo, olhar crítico e, incrivelmente, humor. Humor ácido, claro, que destila ironia tanto quando expõe o quão patético pode ser o ser humano em sua pequenez, mesquinhez e jogos de poder.

Há piadas que são repetitivas, como a rixa entre suecos e dinamarqueses, mas que estão em cena propositalmente, para nos incomodar ao nos expor ao espelho de nossas picuinhas. São implicâncias históricas entre Suécia e Dinamarca mas, como bem afirmou a atriz Bodil Jørgensen em entrevista ao Splash UOL, poderia ser qualquer país, qualquer cidade do mundo.

 Karen (Bodil Jørgensen) é o elo entre o mundo fantástico e o real em "The Kingdom Exodus" - Divulgação - Divulgação
A atriz Bodil Jørgensen vive Karen em "The Kingdom Exodus"
Imagem: Divulgação

"Na verdade, é sobre a humanidade. Lars sempre foi assim, sempre teve este olhar e só apurou ao longo dos anos", comentou ela, que na trama vive a senhora Karen, que está nas três temporadas e é peça fundamental para se entender o mundo e o submundo de "The Kingdom", cujas duas primeiras temporadas, filmadas em película 16mm, foram restauradas e estão já em cartaz, na íntegra, na Mubi.

Nesta temporada final, para salvar o hospital do mal e de seu próprio fim, Karen (Bodil Jørgensen), busca respostas para questões há muito não resolvidas. Ela é sonâmbula e, em uma noite de inverno, sai de casa e tem um motorista à sua espera. Ela acaba na frente do hospital. O portão do Reino está se abrindo mais uma vez e uma jornada surreal começa. Bodil, que é parceira de décadas de Von Trier e protagonizou o hoje clássico do Dogma "Os Idiotas" (1998), tem visões e se comunica com os seres bizarros e misteriosos que habitam e rondam o hospital.

No elenco deste xadrez do bem e do mal, nomes fortes como Lars Mikkelsen (The Killing), Nikolaj Lie Kaas (Loucos por Justiça), Mikael Persbrandt (Sex Education) e Tuva Novotny (Uma Grande Família), além de Alexander Skarsgard (Big Little Lies) e David Dencik (Chernobyl) e Willem Dafoe como atores convidados. Cada um encarnando um personagem perturbado e perturbador, em trajetórias que se cruzam e se chocam.

Mas é Karen o elo entre os dois mundos e, mesmo em sua aparente ingenuidade e loucura, é o senso crítico que tenta alertar a todos, afogados em seus dramas e vaidades, que há algo de podre no reino da Dinamarca, com o perdão do trocadilho infame em referência a Hamlet mas, que, em sua visão também crítica da sociedade dinamarquesa, sabia que havia mais nos jogos de poder de seu reino que apenas o que a superfície deixava se ver.

Se a série herda o nome do hospital real, há muito do já citado olhar crítico de Lars sobre jogo palaciano da sociedade contemporânea na escolha de ambientar a série em um reino em que os reis são médicos muitas vezes arrogantes e superficiais, mais interessados nos brindes que recebem em ocasião de um congresso do que em discutir novas e mais humanistas práticas para a medicina.

Cena da segunda temporada de "The Kingdom", que faz uso do humor e da ironia para examinar as grandes vaidades e dinâmicas humanas - Divulgação - Divulgação
"The Kingdom" faz uso do humor e da ironia para examinar as grandes vaidades e dinâmicas humanas
Imagem: Divulgação

Dito assim, pode parecer que tudo é dor, peso e um certo tom de terror em "The Kingdom". A série tem tudo isso, fato. Mas a terceira temporada chega também contemporânea, com estilo mais leve tecnicamente, mais iluminada, com produção mais cuidadosa e menos despojadas que as duas primeiras. Para além das questões técnicas que atualizam a série, a questão temática é crucial. Se nos anos 1990, comportamentos abusivos dos médicos para com as enfermeiras eram mais tolerados, em 2022 o assédio, por exemplo, não passa incólume. A forma de se administrar um grande hospital e exercer a medicina também sofreu mudanças, mas a essência humana se mantém. Há humor nesta história. Há toda a seriedade que surge com o olhar crítico de Lars, mas há, acima de tudo, um deboche e até um auto-deboche. Lars quebra a seriedade de sua crítica com um humor inesperado e non sense, que desconcerta o público e o tira constantemente do lugar de conforto.

"The Kingdom" é, como não poderia deixar de ser, incômoda. Mas o que esperar de Lars? Um diretor que nos deu obras-primas como "Dogville" ( 2003) e "Melancolia" (2011), além do amado "Dançando no Escuro"(2000) e dos controversos "Anticristo"(2009), "Ninfomaníaca" (2013) e o insuportável, mas engenhoso, "A Casa que Jack Construiu" (2018).

Lars Von Trier durante as filmagens de "The Kingdom Exodus" - Divulgação - Divulgação
Lars Von Trier durante as filmagens de "The Kingdom Exodus"
Imagem: Divulgação

Lars já arranjou muita confusão com seus filmes sempre pontiagudos e suas opiniões sempre controversas. Já foi expulso do Festival de Cannes por "brincar" sarcasticamente que "entendia" Hitler na coletiva de imprensa de "Melancolia", que concorria à Palma e deu a Palma de Atuação para a atriz Kirsten Dunst. Passou, como ele mesmo afirmou, anos de angústia, repensou, retratou-se, foi aceito de volta em 2018, quando exibiu fora de competição "A Casa que Jack Construiu", em que Matt Dillon vive um serial killer.

Desde então, desenvolveu projetos paralelos e esta nova temporada de "The Kingdom" (que até remake norte-americano ganhou, aliás), tratou finalmente o alcoolismo e a depressão que o consumiam. Hoje, Lars também está mais recluso, enfrentando o mal de Parkinson e produzindo uma nova série de curtas-metragens, "Étude", ainda sem data para lançar.

"The Kingdom", que foi, ainda nos anos 90, inspirada na genial "Twin Peaks" (de David Lynch), é a oportunidade para se adentrar novamente neste universo sempre fascinante que o diretor nos abre de tempos em tempos. Há um quê de novela e melodrama, há cinema, há esta TV inquieta e um tanto desajeitada que ele tenta/tentou fazer, há terror, humor, crítica e, acima de tudo, a certeza de que ainda que longe de ser uma obra-prima, estamos diante do universo de um criador genial. Como também disse Bodil ao Splash UOL, Lars dedicou sua vida ao cinema, nunca fez concessões e enfrentou estas consequências. Vale a pena entrar neste reino nem que seja para ser chacoalhado pela imaginação inquieta de Lars. Até o Natal, um domingo de terror e "terrir" se abre com "The Kingdom".