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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Arábia Saudita aposta no cinema para aumentar influência no mundo

O CEO do Red Sea International Film Festival, Mohammed Al Turki, a atriz Sharon Stone e Jomana Al Rashed, chairwoman do Red Sea Film Foundation - Daniele Venturelli / Getty Images / Divulgação para o RedSea IFF
O CEO do Red Sea International Film Festival, Mohammed Al Turki, a atriz Sharon Stone e Jomana Al Rashed, chairwoman do Red Sea Film Foundation Imagem: Daniele Venturelli / Getty Images / Divulgação para o RedSea IFF

Colunista do UOL

11/12/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • Proibido até quatro anos atrás, o cinema se tornou peça-chave na estratégia da Arábia Saudita de ampliar a sua influência mundial
  • Neste ano, o país promove um festival de cinema, com cineastas de todo o mundo e premiações
  • Questionado por falta de liberdade, o regime saudita não censurou filmes com cenas de nudez e que tratam de homossexualidade

131 filmes de 61 países, dos quais 72 longas, 42 curtas e 34 premières mundiais, com 58 filmes árabes e 23 filmes sauditas, 35 cineastas mulheres.

Uma competição com filmes de cineastas de países como Arábia Saudita, Iraque, Indonésia, Marrocos, avaliados por um júri presidido pelo cineasta Oliver Stone, que tem a seu lado na lista de convidados ilustres do evento nomes como Sharon Stone, Spike Lee, Andy Garcia, Gaspar Noé, Fatih Akin, Luca Guadagnino, Antonio Banderas, Guy Ritchie, Jack Chan, entre outros.

Estes são os números e dados do Red Sea International Film Festival, ou o "Festival do Mar Vermelho", que ocorre na cidade de Jeddah, na costa da Arábia Saudita, até o próximo domingo. Números expressivos para um festival que está em sua segunda edição, em um país em que ir ao cinema foi proibido por 35 anos.

Foi a partir de 2018 que os sauditas puderam voltar às salas e, em um movimento de política de estado que tem a indústria cultural como pilar estratégico, não só o Red Sea Film Festival foi criado pouco tempo depois como também uma Film Commission, um Fundo de investimento em audiovisual (Red Sea Film Fund) e um mercado de cinema, o Souk, que reúne profissionais de todas as áreas da cadeia de produção audiovisual.

A programação intensa conta com painéis, oficinas, rodadas de negócio, rodadas de pitching (apresentação de projetos) e oferece prêmios para os melhores, que recebem quantias em dinheiro para alavancar suas produções.

Dados oficiais estimam que a chamada renascença (ou Retomada) da indústria cinematográfica do Reino (ou Kingdom, como os sauditas também chamam seu país) terá um crescimento exponencial que atingirá a cifra de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,86 bilhões) por volta de 2030. Recentemente, o governo saudita anunciou uma série de ações e planejamentos que miram estabelecer a Arábia Saudita como um hub internacional e se posicionar entre as 20 principais indústrias globais do audiovisual.

Todo este investimento e esta política pública permitiram que em pouquíssimo tempo não só o circuito de exibição crescesse em todo o país como a produção florescesse. Consumidores de filmes realizados em países que são influência na península arábica como Egito, Líbano, Kuwait, entre outros, os sauditas entendem que a importância estratégica de contar suas próprias histórias é crucial em tempos em que o país também se abre para o mundo como nunca.

A DJ Chantel Jeffries toca em uma das festas do Red Sea International Film Festival na Arábia Saudita - Divulgação  - Divulgação
A DJ Chantel Jeffries toca em uma das festas do Red Sea International Film Festival na Arábia Saudita
Imagem: Divulgação

Aos olhos ocidentais, a abertura pode ainda provocar dúvidas sobre a rapidez do processo e seu caráter genuíno. Como fato, para se ter uma ideia, nesta mesma semana em que o Red Sea Festival ocorre, um festival de música eletrônica também é realizado em Jeddah, o Balad Beast, e um grande festival de música na capital saudita Riad, o Soundstorm. O astro Bruno Mars, uma das principais atrações do Soundtorm, foi quem se apresentou na festa de abertura do Red Sea IFF.

Para surpresa dos estrangeiros presentes, uma pequena multidão de garotas sauditas pulavam vestidas em suas abayas (a túnica típica) sem que o hijab (o véu) saísse do lugar enquanto os garotos dançavam todas as coreografias das músicas de Mars sem deixar a ghutra (o tradicional lenço vermelho e branco) também sair da cabeça. "O fato é que não se pode parar a história, a tecnologia permite que os jovens estejam conectados e todos, preservando sua cultura, também querem se divertir", comentou um dos fãs a Splash.

A questão da discrição e da exposição em redes sociais, imprensa e mídias afins ainda é delicada no país, mas esta colunista não só tirou fotos com sauditas como as postou em suas redes sociais, o Instagram é amplamente usado e é um dos preferidos dos mais jovens. Já em questão de WhatsApp, o aplicativo está totalmente liberado para trocas de texto e mensagens de voz. É possível fazer ligações normalmente via dados (somente chamadas via Wi-Fi estão bloqueadas).

Chamadas telefônicas por FaceTime são livres. Quanto à internet, o acesso às redes pareceu liberado em todos os sites que esta colunista tentou acessar. No entanto, bebidas alcoólicas, de fato, somente em festas das embaixadas dos países que possuem representação diplomática na Arábia Saudita e onde a bebida é, claro, permitida. Nas festas oficiais do Red Sea (e foram várias), é servida uma champanhe sem álcool com gosto de guaraná e há mojitos que mais parecem refrigerante de limão.

Jovens durante uma das sessões do Red Sea Film Festival na Arábia Saudita - Eamonn M. McCormack / Getty Images/ Divulgação para o RedSeaFF - Eamonn M. McCormack / Getty Images/ Divulgação para o RedSeaFF
Jovens durante uma das sessões do Red Sea Film Festival na Arábia Saudita
Imagem: Eamonn M. McCormack / Getty Images/ Divulgação para o RedSeaFF

Mas vamos às questões do cinema. Engana-se quem pensa que a programação do Red Sea IFF sofreria controle e/ou direcionamento de temáticas. Não só a competição oficial, composta por filmes realizados por diretores islâmicos, trouxe temas delicados como abandono na infância (caso do duríssimo Hanging Gardens, do Iraque, vencedor desta edição), a vida dos jovens árabes, que não melhorou consideravelmente depois da Primavera Árabe (caso do belíssimo, e premiado em Cannes, "Harka"), emancipação feminina (como "Queens", da marroquina Yasmine Benkiiran), mas também as mostras paralelas.

Para se ter uma ideia, o irlandês "Banshees of Inisherin", de Martin McDonagh, que deu a Collim Farwell o prêmio de Melhor Ator no Festival de Veneza 2022, tem cena de nu frontal masculino que não foi cortada e foi exibido diante de uma plateia lotada de sauditas na sala mais luxuosa do The Ritz-Carlton, hotel e sede do festival. Já o marroquino "Blue Caftan", que também concorreu na mostra Un Certain Regard em Cannes, trata do desejo e de homossexualidade de uma forma sutil, mas franca e revela as nuances da sociedade que se divide entre modernização e tradição.

Já "St. Omer", da francesa Alice Diop, traz um tema duro como o infanticídio. Vencedor do grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza e representante da França no Oscar 2023,o longa também integrou a programação com direito à presença da atriz protagonista. "Eu vejo com muita liberdade a discussão em torno de um filme que traz um tema como este não só para um público europeu ou especializado, mas também que está descobrindo muitas cinematografias", declarou a atriz Guslagie Malanda.

Sobre censura e possibilidade de realizar um cinema independente e crítico em um país como a Arábia Saudita, o cineasta franco-argentino Gaspar Noé, famoso por seus filmes polêmicos e violentos como "Irreversível" e "Love", afirmou que "cada país tem seu tipo de censura e cada país tem seu tipo de problemática" e que ficou feliz com o convite para conferir e aprender mais sobre o cenário audiovisual saudita.

"Entre os filmes da programação, há alguns que jamais imaginaria que seriam selecionados para serem vistos neste país até há cinco, dez anos. Há uma mudança de direção no que é a política cultural no país", afirmou ele, que, de seus filmes, só "Vortex"(2021) foi exibido no mercado saudita.

"É o filme mais adaptado para o público daqui, penso, pois é uma história de dois anciões e a mulher tem Alzheimer. Talvez haja coisas que se pode mostrar no cinema que não se possa mostrar na TV, mas hoje o mundo está tão interconectado que não há nada que haja em um país que não se possa ver no outro porque todo mundo está na internet. Censurar o que é o mundo é quase impossível."

"Se você pensa que não há liberdade, é porque não viu nossa programação. E a gente volta aqui ao seu comentário sobre o que é um festival. Um festival é um ecossistema específico, que traz este ambiente de liberdade." Myriam Arab, diretora do Souk, o mercado saudita de cinema

Myriam acrescentou que a população saudita pode comprar os ingressos a preços módicos e que diversas empresas de distribuição compraram filmes da programação para os distribuir, e exibir, no país.

A equipe do filme iraquiano "Hanging Gardens" (o ator Hussein Mohamad, o diretor Yassin Al Daradji, May Odeh, Yousra) e CEO do Red Sea International Film Festival, Mohammed Al Turk,i e Jomana Al Rashed em foto oficial após o longa vencer o Red Sea Festival  - Eamonn M. McComarck /Divulgação / Getty Images para o Red Sea Film Festival  - Eamonn M. McComarck /Divulgação / Getty Images para o Red Sea Film Festival
A equipe do filme iraquiano "Hanging Gardens" (o ator Hussein Mohamad, o diretor Yassin Al Daradji, May Odeh, Yousra) e CEO do Red Sea International Film Festival, Mohammed Al Turk,i e Jomana Al Rashed em foto oficial após o longa vencer o Red Sea Festival
Imagem: Eamonn M. McComarck /Divulgação / Getty Images para o Red Sea Film Festival

O exemplo de "Hanging Gardens", de Ahmed Yassin Aldaradji, é um dos casos que ilustram a tese de que o desejo de investir na cultura e na liberdade de criação, ao menos por parte de quem faz audiovisual e cultural, a longo prazo são genuínos.

O longa participou da primeira edição do Souk, em 2022, integrando a seção Work in Progress e já foi considerado um sucesso ao ser selecionado para o Festival de Locarno, na Suíça, considerado um dos mais importantes eventos de cinema independente e autoral do mundo. "Locarno foi uma grande conquista para nós. Ter o filme agora aqui no Red Sea e saber que ele vai viajar ainda mais nos enche de orgulho", declarou Myriam.

Projeto ousado do diretor iraniano, "Hanging Garden" faz ironia com os "Jardins Suspensos da Babilônia" e como são chamados hoje os lixões que se espalham pelo Iraque, um país devastado por tantos conflitos, deixado às moscas após a desocupação norte-americana, entregue ao caos social. É exatamente um lixão que serve de casa e fruto de sustento do garoto As'sad.

Ele tem apenas 12 anos, seu pai foi morto pelos americanos e a mãe não se sabe. Entre uma violência e outra, um achado e outro, ele encontra uma real doll no lixão. É então que ele se afeiçoa à boneca, projeta nela o carinho materno que não recebe, cuida dela e até roupas compra. Mas também vê nela a chance de sobrevivência ao torná-la o brinquedo sexual dos outros jovens da região pobre e violenta em que vive.

Há humor, tristeza, ironia, dor e revolta em "Hanging Gardens". Questionado se As'sad seria a própria metonímia do Iraque, um país que, assim como o garoto, luta para sobreviver em meio ao caso, o diretor concordou.

"Fico feliz que as pessoas estão percebendo isso. Não é um filme fácil, mas precisamos discutir isso", respondeu ele, que também contou que se inspirou numa história que aconteceu com ele. "Um dia, quando eu morava ainda no Iraque (ele se divide entre Bagdá e Londres), um amigo chegou com uma vagina de plástico. Aquilo foi um choque, pois era impensável um brinquedo sexual assim no Iraque ainda mais naquele tempo." Com o filme, o cineasta também nos sinaliza que quem está mudando o Iraque é esta nova geração.

Cena de "Hanging Gardens", filme que trata com dureza e poesia a situação de abandono em que a juventude iraquiana vive atualmente e sua força para resistir e construir um novo Iraque - Divulgação  - Divulgação
Cena de "Hanging Gardens", filme que trata com dureza e poesia a situação de abandono em que a juventude iraquiana vive atualmente e sua força para resistir e construir um novo Iraque
Imagem: Divulgação

Sexo também dá o tom a um outro filme em competição, o cazaque "Mountain Onion". Em um outro tom, muito mais leve, mas ainda assim ousado, o filme conta a história do pequeno Jabai, cujo pai é um cara sensível, que tem um pequeno posto de gasolina em uma pequena cidade do interior do Cazaquistão e muita consciência sócio-ambiental. Para ajudar a família, o menino vende cebolinha na estrada local (daí a mountain onion, a "cebola da montanha").

Um dia ele vê a mãe beijando um caminhoneiro e acha que seus pais vão se divorciar. Ao ver o pai chorar, "entende" que ele precisa retomar sua força e seu lugar de poder em casa. O Jabai decide, então, partir em uma viagem a uma cidade vizinha para comprar o "Viagra de Ouro" e, assim, com a melhora do "desempenho físico" de seu pai, ajudar a salvar o casamento.

"Fiquei surpreso. Nosso filme é leve, tem humor, mas também fala de traição, sexo, crise no casamento. No início da sessão, senhoras atrás de nós comentavam várias cenas e a gente, claro, não entendia o que estavam dizendo. Ficamos com medo de sermos destruídos no final do filme. Mas foi o contrário, as pessoas, tanto jovens quanto mais velhas, vieram nos cumprimentar, dizer que se emocionaram. Apesar das diferenças culturais, os sauditas estão antenados e, afinal, cinema é universal", declarou o diretor cazaque Eldar Shibanov, que desenvolveu o projeto de "Mountain Onion" em um laboratório do Festival de Veneza, o Biennale College Cinema, que dá o prêmio de 150 mil euros aos filmes vencedores.

Coprodução, aliás, é a chave do cinema contemporâneo. Não só cineastas europeus independentes como latinos (incluindo o Brasil, que tem encontrado na coprodução a viabilidade para projetos em tempos de crise), asiáticos e árabes têm apostado cada vez mais na coprodução.

Os valores bilionários já citados acima estão abertos para todos projetos de cineastas islâmicos e isso inclui também quem mora no Brasil e é islâmico ou tem uma coprodução com um cineasta islâmico de religião outro país islâmico.

"Se um cineasta brasileiro tiver um projeto que se encaixe no escopo do Red Sea Fund, ele pode sim concorrer com um projeto. Nós vamos aos poucos, pois somos muito jovens e temos muitas frentes para desenvolver e estabelecer, mas o Brasil e a América Latina estão no nosso radar para que novas ações futuras sejam feitas em parceria." Myriam Arab.

Cena do cazaque "Mountain Onion", que conta a história de um garoto quer ajudar a salvar o casamento dos pais  - Divulgação  - Divulgação
Cena do cazaque "Mountain Onion", que conta a história de um garoto quer ajudar a salvar o casamento dos pais
Imagem: Divulgação