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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Além da Copa, Argentina é campeã no cinema: veja filmes essenciais

"O Segredo de Seus Olhos" deu à Argentina o segundo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2010 - Divulgação
"O Segredo de Seus Olhos" deu à Argentina o segundo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2010 Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

20/12/2022 04h00

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36 anos depois, a Argentina finalmente conquistou o suado tricampeonato mundial em uma das finais com reviravoltas dignas de um roteiro rocambolesco. Até quem não é fã assíduo de futebol parou para ver as jogadas geniais do craque Messi, merecedor de um mundial à sua altura. Mas e o cinema argentino? Há craques, lances geniais e conquistas tão importantes quanto no campo do audiovisual que merecem que se pare para ver que o cinema dos hermanos enche de orgulho a América Latina.

E se a espera foi grande nos campos, no Oscar também. A Argentina também é bicampeã da categoria. Levou pela primeira vez em 1986 com "A História Oficial" e pela segunda vez em 2010 por "O Segredo de Seus Olhos".

Há 12 anos a Argentina não leva um Oscar de Melhor Filme Internacional, mas em 2023 tem chance de também de conquistar o tricampeonato no cinema com o ótimo "Argentina 1985", um perfeito "filme de Oscar" que, com linguagem clara, roteiro bem resolvido e direção acertada, conta a história do primeiro processo que os argentinos moveram contra os crimes da Ditadura Militar no país.

Os adversários são fortes (como o vencedor da Palma de Ouro em Cannes "Triângulo da Tristeza"), mas os hermanos têm fortes chances. Em 21 de dezembro, a lista dos pré-indicados será divulgada e a torcida por "Argentina 1985" cresce na medida que a pela seleção.

Prêmios à parte, o fato é que o cinema argentino, assim como o brasileiro, passou por altos e baixos nas últimas décadas, com desenvolvimento de políticas públicas para o setor, de profissionais do roteiro que são marca forte dos hermanos, Mas também crises econômicas que ameaçam a produção. Para se ter uma ideia, Santiago Mitre, diretor de "Argentina 1985", em conversa com esta colunista durante o Festival de Veneza 2022 (quando o filme fez sua estreia mundial), afirmou que não saberia como realizaria e/ou bancária seu próximo filme por conta do atual cenário econômico do país.

O fato é que os cinéfilos, assim como os apaixonados por futebol, têm muito o que descobrir e torcer por um país que tem um audiovisual que revela suas histórias e suas entranhas com produções diversas. Isso sem contar as tantas coproduções que a Argentina tem realizado com o Brasil (como "O Livro dos Prazeres", de Marcela Lordy e "Zama", da genial Lucrécia Martel).

A seguir, confira uma lista, afetuosa, de alguns filmes para se descobrir desde o cinema mais comercial ao mais autoral do novo tricampeão:

Ricardo Darín e Peter Lanzani em cena de 'Argentina, 1985', que pode dar o tricampeonato do Oscar de Melhor Filme Internacional ao país em 2023 - Divulgação - Divulgação
Ricardo Darín e Peter Lanzani em cena de 'Argentina, 1985'
Imagem: Divulgação

Argentina 1985 (2022)

Candidato da Argentina ao Oscar 2023, "Argentina, 1985" é estrelado por Ricardo Darín, nome que não pode faltar em listas sobre o cinema de seu país e que vai aparecer em alguns títulos aqui. Falando especificamente do longa dirigido por Santiago Mitre, o filme estreou mundialmente no Festival de Veneza 2022, em setembro, e conseguiu a façanha de ganhar os corações tanto do público internacional quanto dos latino-americanos presentes ao evento.

"Argentina, 1985" é de fato o tal do "filme perfeito para o Oscar". É bem realizado, bem dirigido, tem atuações ótimas e um roteiro muito bem amarrado, que conta uma história relevante tanto sociopoliticamente quanto na questão pessoal de seus personagens. A força está justamente no equilíbrio de todos os elementos. O filme conta a história real do "Juicio de 1985", o julgamento dos militares responsáveis pelos crimes da fase mais terrível da Ditadura que dominou a Argentina por sete anos (de 1976 a 1983), mas que deixou 30 mil desaparecidos.

Na trama, Darín vive o promotor Júlio Strassera que, ao lado de Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), liderou, em 1985, uma equipe que investigou e processou militares de alta patente que comandaram as Forças Armadas argentinas no período em que ocorreram milhares de prisões, torturas, violações, assassinatos, entre outros crimes contra a humanidade e contra os que se opunham ao regime ditatorial militar.

Para o público brasileiro, que viu o país decretar Anistia em 1979 (em decreto do então presidente João Baptista Figueiredo) e jamais julgar os crimes cometidos pela Ditadura Militar, chega a ser um exercício duro assistir às cenas de julgamento. Com ampla pesquisa em cenas reais do Juicio, que foram registradas e transmitidas na TV, "Argentina, 1985" revela a mobilização dos que sofreram torturas, das "Mães de Maio" e de toda a sociedade argentina. É, para além da trama em si, uma inspiração e o recado de que jamais se deve dar a história como passado, pois o totalitarismo ronda sempre.

"Acreditamos que podemos e que podíamos e achávamos que o "Nunca Mais", como disse o promotor Strassera, seria para sempre. Mas a violência segue existindo e acreditamos que o filme cobra uma vitalidade que nós não pensávamos que cobraria", disse Santiago Mitre ao UOL. Para não esquecer, para aprender, para se emocionar, "Argentina, 1985" é imperdível.

O filme está disponível na Amazon Prime Vídeo

"Zama", de Lucrécia Martel, é uma coprodução entre Argentina e Brasil que revela o talento da diretora e do cinema argentino contemporâneo - Divulgação - Divulgação
"Zama", de Lucrécia Martel, é uma coprodução entre Argentina e Brasil que revela o talento da diretora e do cinema argentino contemporâneo
Imagem: Divulgação

Zama (2019)

A diretora Lucrécia Martel não só é um dos maiores nomes do cinema argentino como do cinema mundial em atividade. Seu cinema é ousado, estranho, irônico, ora com um senso de humor incomum, ora com um tom que beira o trágico.

Não há como sair de um filme dela indiferente. De seu primeiro longa de sucesso, o genial "O Pântano" (2001) até seu menos compreendido "A Mulher Sem Cabeça (2008), passando por "A Menina Santa" (2004), Martel é mestre em tirar o espectador de sua zona de conforto e fazê-lo embarcar em um cinema esdrúxulo, mas sempre instigante.

"Zama" marcou a volta da cineasta depois de nove anos sem realizar um longa, quando lançou o hermético "A Mulher sem Cabeça" no Festival de Cannes, quando seu cinema de atmosfera e muita sugestão não se comunicou tão bem com o público.

Já com "Zama" (uma coprodução com a Bananeira Filmes, do Brasil), ela mudou alguns aspectos. Além de ir ao passado para falar muito do presente, a cineasta também construiu um filme em que há mais humor, muitas vezes vindo de situações em que, como manda a tradição da América Latina, "é rir para não chorar" diante dos absurdos.

O longa é inspirado no romance homônimo de Antonio Di Benedetto, publicado em 1956, e conta a história de Dom Diego de Zama, um funcionário da coroa espanhola que, no final do século 18, está em serviço em um pequeno povoado nos confins da colônia. Ele não suporta mais a vida provinciana e aguarda com grande ansiedade, e até angústia, a sua transferência para a capital Buenos. Para agradar à Coroa e conseguir o que deseja, faz de tudo para ser um bom funcionário, para não desagradar.

Mas o tempo passa, a transferência nunca chega e, no compasso da espera, Zama se vê cada vez mais mergulhado em um universo de tédio e desespero. Eis que surge um assassino na região (Matheus Nachtergaele) e Zama decide partir em sua caçada ao lado de um bando que está atrás do criminoso.

A trama, então, ganha mais ação, mas o que persiste é a loucura e a monotonia dos dias em uma colônia em que negros e indígenas não tinham protagonismo (assim como no filme, fiel ao retrato de uma época e, sem "falar", dizendo muito sobre o processo de formação não só da Argentina mas de toda a América Latina) e em que a suposta elite vive em um limbo, sonhando com a matriz colonizadora europeia, sem jamais ser reconhecida por ela. Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência.

Disponível para alugar no streaming (Youtube e Googleplay)

Irene (Soledad Villamil) e Espósito (Ricardo Darín) em cena de "O Segredo de Seus Olhos" - Divulgação - Divulgação
Irene (Soledad Villamil) e Espósito (Ricardo Darín) em cena de "O Segredo de Seus Olhos"
Imagem: Divulgação

O Segredo de Seus Olhos (2009)

Sucesso estrondoso de público e crítica, dirigido por Juan José Campanella e estrelado por Ricardo Darín, deu o Goya (o Oscar espanhol) e o segundo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro à Argentina em 2010, além de outras dezenas de prêmios.

É o melhor do cinema argentino bem escrito, bem filmado, que dialoga com o grande público e que também tem qualidade cinematográfica para fazer os cinéfilos mais exigentes felizes. O roteiro, baseado no livro homônimo de Eduardo Sacheri, é uma engrenagem perfeita. Tudo se encaixa na história do investigador Benjamin Espósito, vivido com maestria por Ricardo Darín que, com o filme, selou seu papel de "a cara do cinema argentino contemporâneo". Ele, a propósito, já havia aberto este caminho com "O Filho da Noiva", em 2002, também de Campanella, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Espósito está aposentado e decide se dedicar a escrever um livro sobre um caso que marcou sua vida e sua carreira no Tribunal Penal. Ele quer contar a história de um assassinato ocorrido em 1974, investigado por ele, e procura a amiga e ex-chefe Irene (Soledad Villamil), que ainda está na ativa, para ajudá-lo.

A partir daí, memórias, velhos sentimentos até então sufocados (Espósito sempre foi apaixonado por Irene), traumas e mistério voltam à tona. Com direção precisa, que trabalha muito bem tanto a construção de cada cena e dos atores em quadro quanto a fotografia, que oscila entre o claro e o escuro, "O Segredo de Seus Olhos" é um ótimo filme de suspense policial, com doses de humor e drama. É a fórmula que o cinema argentino sabe seguir muito bem e que rende grandes filmes. Mais de uma década depois, o longa continua ótimo.

Disponível na Amazon Prime Vídeo

Cena de 'Como Matar a Besta', de Augustina San Martín, uma coprodução entre Argentina, Brasil e Chile. - Divulgação - Divulgação
Cena de 'Como Matar a Besta'
Imagem: Divulgação

Como Matar a Besta? (2021)

Dirigido pela jovem Agustina San Martín, "Como Matar a Besta" é uma coprodução entre Argentina, Brasil e Chile. O filme conta a história de Emília, jovem de 17 anos que chega a uma cidade de fronteira do Brasil com a Argentina em busca do irmão que está há tempos desaparecido. Ela se hospeda na casa de uma tia, que vive perto de uma floresta onde dizem viver uma fera. Este ser, na verdade, pode ser um homem mau que se transforma na criatura.

Exibido em festivais importantes, como o de Toronto e o Festival do Rio, o longa estreou no Brasil em abril no Brasil na programação da Sessão Vitrine, que traz filmes nada óbvios, que não estreiam em circuito de multiplex, mas que merecem atenção.

Com atmosfera entre a realidade e o sonho, "Como Matar a Besta" aproveita com muita competência as paisagens da Região das Missões, no sul do Brasil e norte da Argentina. A cultura híbrida local transita não só entre idiomas indígenas, o português, o espanhol e até o ucraniano, mas também entre os mitos e o folclore de diversos povos. Tudo isso é traduzido tanto pela história, que se serve deste universo fantástico, quanto pelo trabalho do elenco, que conta com nomes como Tamara Rocca, Ana Brun, João Miguel e Sabrina Grinschpun, entre outros.

Todos os ingredientes estão a serviço de uma trama que revela muito no que não é mostrado e nem dito. Neste imbróglio em que se mete Emília, ninguém fala tudo que sabe, ninguém revela quem realmente é. E matar a besta, seja interna ou externa, em países que enfrentaram ditaduras, que trazem um histórico de violência em seu processo de formação, é um desafio real, mas, acima de tudo, simbólico.

"Como Matar a Besta" pode ser alugado e/ou comprado no streaming, disponível na Amazon Prime Video, Google Play e Apple TV.

Mariana (Pilar López de Ayala)  e Martin (Javier Drolas) são vizinhos que nunca se encontram em uma Buenos Aires cheia de solidão e meio à multidão - Divulgação - Divulgação
Mariana (Pilar López de Ayala) e Martin (Javier Drolas) são vizinhos que nunca se encontram em uma Buenos Aires cheia de solidão e meio à multidão
Imagem: Divulgação

Medianeiras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (2011)

Chega a ser curioso que "Medianeras" tenha estreado no Brasil com o subtítulo "aplicativos de encontros que funcionariam como catálogos de pessoas ao alcance da mão". Ainda assim, há quase 12 anos a forma dos jovens se relacionarem já havia sofrido uma revolução que não teria mais volta. Não por acaso, este modesto, mas muito bem realizado, filme de Gustavo Taretto se tornou um clássico instantâneo não só do cinema cult latino, mas mundial. Há fã-clubes de "Medianeras" espalhados pelo mundo, que sofre cada vez mais com o isolamento que o modo de vida contemporâneo, principalmente nas grandes cidades, impõe às pessoas.

É no neste contexto pós-moderno que os protagonistas desta comédia romântica de costumes se encontram pela primeira vez. Na trama, Mariana (Pilar López de Ayala) e Martin (Javier Drolas) são vizinhos de bairro, que moram no mesmo quarteirão, em edifícios de frente ao outro, janela a janela. No entanto, nunca se veem ou se olham. Ele é um webdesigner que sofre de fobia e, aos poucos, depois de levar um fora homérico, está voltando a sair à rua e deixar um pouco o mundo virtual. Ela é arquiteta, mas trabalha como vitrinista e também está saindo de um longo, e conturbado, relacionamento. Em suas idas e vindas por Buenos Aires, eles se cruzam, na locadora, no café, na praça, no ônibus, mas não se veem. Um dia, em meio à multidão da cidade, finalmente se encontram, e uma relação começa, mas não sem passarem por altos e baixos.

"Medianeras" é um filme sobre a solidão da cidade grande, mas também de um mundo em que estamos cada vez menos conectados ao real e mais iludidos com a "ideia do real", e com a falsa sensação de conforto, que o mundo virtual nos dá. Entre muros, janelas, ruas e medianeras (aquelas "paredes cegas" dos prédios, que não têm janelas), há corações e mentes que querem apenas serem vistos, conectar-se, encontrar-se, amar.

O argumento do filme (escrito por Taretto), que poderia facilmente descambar para uma comédia romântica clichê, é uma ode melancólica, mas com muito senso de humor, à eterna dicotomia entre estar rodeado de gente e, ao mesmo tempo, só. Além do roteiro que não cai em armadilhas açucaradas, a direção, que valoriza cada ponto do quadro, cada detalhe das vitrines que Pilar decora, cada movimento dos atores, conduzem o espectador com leveza e poesia. É um filme memorável que, não por acaso, também levou dezenas de prêmios pelo mundo, incluindo o de Melhor Filme Latino do Festival de Gramado.

Disponível na Reserva Imovision (acesso também pela Amazon Prime Vídeo)