Topo

Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Will Smith: entre tapas e Oscar, um ano de crise e de uma possível redenção

Will Smith dá um tapa em Chris Rock durante o Oscar 2022 - Neilson Barnard/Getty Images
Will Smith dá um tapa em Chris Rock durante o Oscar 2022 Imagem: Neilson Barnard/Getty Images

Colunista do UOL

31/12/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

2022 certamente vai ficar marcado como um dos anos mais intensos da vida de Will Smith. Senão, o mais intenso e atribulado.

Este foi o ano em que o ator levou o Oscar de Melhor Ator por "King Richard", mas a conquista foi, se não arruinada, ofuscada pela repercussão do tapa que ele deu no humorista Chris Rock, 40 minutos antes de subir ao palco do Dolby Teather, em Los Angeles, onde a festa é realizada, para receber e agradecer pelo prêmio com o qual ele sonhara a vida toda.

Chris Rock, relembrando rapidamente, iria apresentar o prêmio de Melhor Documentário do ano e aproveitou a ocasião para fazer uma piada, no mínimo, sem graça com Jada Pinkett Smith, mulher de Smith.

Rock, famoso por seu humor cáustico, afirmou que, por estar calva (em decorrência de uma alopecia), Jada já poderia protagonizar "G.I. Jane 2", em referência à personagem que Demi Moore interpreta em "Até o Limite da Honra" (1997).

Na trama, Moore é a tenente Jordan O'Neil, que raspa a cabeça ao se alistar na Marinha Americana. Jada não levou a piada na brincadeira. Smith inicialmente sorriu mas, depois de ver a cara de reprovação da mulher, em um impulso, não só proferiu palavras agressivas a Rock como se levantou e estapeou o humorista diante de uma plateia mundial.

Jada Pinkett Smith na cerimônia do Oscar 2022 - Getty Images - Getty Images
Jada Pinkett Smith
Imagem: Getty Images

"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" é o nome de um dos filmes mais badalados da temporada 2022 (dos Daniels). Mas poderia ser o nome do filme da vida de Smith em 2022. Da glória à lama em questão de minutos, do apoio do ator Denzel Whashington, que fez questão de conversar com ele ainda durante a cerimônia do Oscar, às críticas e julgamento mundiais sobre sua conduta, não foi simples nem fácil o momento de maior glória de sua carreira.

Mais complicado ainda foram os dias que se seguiram, com direito a reunião especial da diretoria da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que organiza o Oscar, que o baniu do Oscar por dez anos. Pouco antes, o próprio ator já tinha renunciado à mesma Academia e, logo depois, comunicou sua decisão de se retirar para repensar tudo. É clichê, mas é também correto afirmar que um furacão passou pela vida de Smith.

Além das questões com a Academia, a popularidade de Smith despencou, projetos foram cancelados e/ou colocados em modo de pausa. Mas, se de toda crise surgem pontos positivos, o episódio serviu para se discutir em escala mundial os limites das piadas, o que é alopecia (doença que causa queda de cabelo), além dos limites entre defesa da honra e da família e violência.

Smith inspirou e inspira ainda gerações fãs, principalmente jovens, em todo o mundo e, se o tão almejado Oscar tem repercussão imensa, o tapa teve repercussão maior ainda. Ainda é difícil afirmar se ele sai renovado deste ano tão complicado, mas seu nome nunca esteve tão em voga como em 2022.

Por seu papel em "King Richard", Will Smith levou o Oscar de Melhor Ator - Divulgação - Divulgação
Por seu papel em "King Richard", Will Smith levou o Oscar de Melhor Ator
Imagem: Divulgação

Pedido de desculpas a Chris, à mãe de Chris e ao mundo

Após o incidente do Oscar, Smith passou meses recluso, longe da mídia, das telas e das redes sociais, em que sempre foi muito presente. Em julho, veio o pedido de desculpa a Rock em seu canal do Youtube, quando respondeu perguntas do público e afirmou que não havia pedido desculpa ao humorista em seu agradecimento pelo Oscar por ainda estar confuso e não ter ideia clara da situação toda.

O vídeo intitulado "It's been a minute" teve mais de 4 milhões de visualizações e cerca de 30 mil comentários. "Chris, eu queria pedir desculpa a você. O que eu fiz foi inaceitável e, quanto você estiver pronto para conversar, eu estou aqui. Eu queria pedir desculpa à mãe de Chris. Eu vi uma entrevista que ela deu e, sabe, esta foi uma das coisas sobre aquele momento, eu simplesmente não percebi... sabe, eu não estava raciocinando sobre quanta gente eu magoei naquele momento. Então, eu queria pedir desculpa à mãe de Chris e à família de Chris, especialmente a Tony Rock. A gente tem uma relação ótima", declarou Smith.

"Eu passei os últimos três meses "revendo" e entendendo as nuances e a complexidade do que aconteceu naquele momento. (...) Eu posso dizer a todos vocês que não há nenhuma parte de mim que pensa que aquela era a forma certa de me comportar naquele momento. Não há nenhuma parte em mim que pensa que aquela era a forma ideal de lidar com o sentimento de desrespeito e insulto", acrescentou.

Desculpas aceitas e "Emancipation"

A decisão tática de se recolher, repensar, processar e voltar com humildade parece ter dado certo. Aos poucos, Smith foi voltando às redes sociais, à mídia e aos filmes.

Entre seus projetos que haviam ficado em modo de espera, está um de seus filmes mais arrojados: "Emancipation - Uma História de Liberdade", que ele protagoniza e do qual também é um dos produtores. Do Oscar ao lançamento do novo filme se passaram oito meses. Tempo suficiente para que a Apple, produtora do longa dirigido por Antoine Fuqua ("Dia de Treinamento", "O Protetor "), decidisse encarar o desafio de lançar "Emancipation" ainda neste ano para tentar emplacar a produção na temporada de premiações de 2023.

A estratégia de lançamento funcionou e o filme tem recebido críticas positivas com boa acolhida também do público. Não deixa de ser uma ironia o fato de "Emancipation" ser uma declaração muito clara contra a violência e a favor da compreensão e empatia. Tampouco é justo reduzir toda a carreira de Smith, principalmente depois deste longo período de recolhimento e autoanálise, ao incidente do Oscar. Muito menos justo é invalidar, por conta de polêmicas, a importância de um projeto que trata de um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade.

Astro de filmes como "Ali" (de 2001), "Eu Sou a Lenda" (2007) e da franquia "Homens de Preto" (1997, 2002 e 2012), Smith sempre tinha recusado papéis em tramas que se passam no período da escravidão, mas decidiu abrir uma exceção para reviver na tela a história real de Peter (Smith), um homem escravizado que lutou por sua liberdade durante a Guerra Civil norte-americana (1861- 1865).

"Este foi o filme mais difícil que já fiz", disse em entrevista a esta coluna em novembro, em ocasião do lançamento do filme, que está disponível na Apple TV+. Talvez o papel mais difícil de sua carreira tenha ter sido ele mesmo em 2022 e lançar um filme tão violento em sua fidelidade à realidade bruta da escravidão foi a coroação desta saga de superação.

"Quando faço um filme como este, a esperança é que por meio do entendimento, por meio da representação, que ninguém do público será capaz de se sentar na plateia do cinema e não sentir uma centelha de compaixão e empatia. Por meio do esclarecimento destas confusões históricas, a gente vai conseguir avançar no esvaziamento dessas retóricas de ódio que estão acontecendo por meio das vozes de ignorância de todos os lados", completou.

Cena de "Emancipation - Uma História de Liberdade", Will Smith vive a história real de Peter, um escravizado que luta por sua liberdade  - Divulgação - Divulgação
Cena de "Emancipation - Uma História de Liberdade", Will Smith vive a história real de Peter, um escravizado que luta por sua liberdade
Imagem: Divulgação

A trama de "Emancipation" se concentra no período em que Peter escapa de um canteiro de obras de uma ferrovia no sul escravocrata norte-americano, uma espécie de filial do inferno na Terra, em direção ao norte abolicionista. Os Estados Confederados do sul defendiam o sistema escravocrata vigente e estavam em guerra contra a União no norte, que defendia a abolição. Na época, o então presidente Abraham Lincoln declarou a "Emancipação" (ou a Emancipation Proclamation), de 1° de janeiro de 1863, que previa que todas as pessoas escravizadas nos "estados rebeldes" seriam livres a partir de então.

Ao saber da notícia e entender que os escravizados que lutassem ao lado dos soldados da União ganhariam a liberdade, Peter foge. Caçado por capangas sádicos que o perseguiram pelos pântanos da Louisiana, Peter encontrou forças para resistir em sua fé e no amor por sua família.

O ponto de partida para a criação do roteiro foram as fotos reais que, em 1863, registraram o horror das cicatrizes que "Peter chicoteado "(Whipped Peter) carregava nas costas. Tiradas durante um exame médico do Exército da União, as imagens foram publicadas na revista Harper's Weekly e uma dessas fotos, que ficou famosa como "As Costas Açoitadas" (The Scourged Back), escancarou ao mundo, ao mostrar as costas nuas de Peter mutiladas pelas chicotadas de seus escravizadores, o quão absurda era a lógica da escravidão, causando comoção mundial e contribuindo para que a oposição pública ao sistema escravocrata.

"A combinação de ignorância e medo cria o que sabemos e pensamos como o mal. O conceito de maldade é quase exclusivamente ignorância misturada com medo. E sinto que o único antídoto para ser capaz de criar algum tipo de empatia através da compreensão. Então, para mim, quando faço um filme como este, a esperança é que por meio do entendimento, por meio da representação", acrescentou Will Smith sobre "Emancipation".

O filme é um retrato duro, de violência gráfica, que, mesmo que não renda a Smith uma nova indicação ao Oscar, chega em boa hora para, ao menos, encerrar um ciclo e recomeçar um outro com, tomara, mais equilíbrio. Na espera para serem lançados, ele tem uma dezena de projetos, que estão ou em produção ou em pós-produção. Como ator, estão em pré-produção "Bad Boys 4", "Fast and Loose" e "The Council", estes dois com sua produção. Já como "apenas" produtor, ou produtor executivo, Smith tem projetos como uma versão de "Romeu e Julieta" em formato de musical hip hop (ainda sem título) e uma nova série, também ainda sem título, apresentada por Jada Pinkett Smith.

Enquanto isso, a expectativa por mais uma indicação de Smith ao Oscar não é descabida. Ele pode ser indicado e até vencer, mas não pode nem comparecer à cerimônia (que ocorre em março de 2023) e nem participar de nenhum evento da Academia para promover sua possível candidatura e/ou o filme, que também pode ser indicado em outras categorias.

O páreo vai ser duro, afinal, Brendan Fraser ("The Whale"), Austin Butler ("Elvis"), Collin Farrell ("The Banshees of Inisherin") e Hugh Jackman ("The Son") são outros fortíssimos candidatos, mas, em se tratando de um ano como 2022, nada mais parece ser impossível para o eterno "Príncipe de Bel-Air".