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Em 'Deserto Selvagem', Patricia Arquette vive vigarista apaixonante
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De tempos em tempos surgem comédias que arriscam trazer grandes astros de Hollywood em tramas menos guiadas nos fatos em si, mas sim no personagem, em seus porquês, o modo como reage ao mundo, como o sente.
"Deserto Selvagem" (High Desert), em cartaz na Apple TV+, é uma dessas deliciosas séries character driven. Ainda que a sequência de fatos, aventuras e desventuras da protagonista Peggy (Patricia Arquette, em ótima performance) sejam, obviamente, cruciais para se levar a trama adiante, é a forma desta mulher de meia-idade, tão brilhante quanto atrapalhada, tão honesta quanto trambiqueira, ser, falar, sonhar e se dar mal, mas ainda assim rir e nos fazer rir que é irresistível.
Com direção de Jay Roach (vencedor do Emmy, premiado por "Trumbo - Lista Negra") e produção de Ben Stiller (que dirige "Ruptura", com quem Arquette também trabalha nesta outra série diametralmente oposta, mas genial), "Deserto Selvagem" é errática, traz um humor quase deslocado, em que se si em momentos em que se devia talvez chorar ou querer chacoalhar a heroína nada perfeita que Peggy é.
Basicamente, ela é uma mulher de meia-idade, cujo marido, que ela ama, mas que atrasa sua vida muitas vezes, está preso, perdeu sua mãe (que ela idolatrava) e tem de se reinventar antes que seja tarde demais. Detalhe, está em tratamento contra a dependência em drogas, mas se tornou praticamente dependente dos medicamentos.
A solução encontrada? Virar detetive particular a qualquer custo (nem que seja preciso mandar a melhor amiga, no lugar dela para fazer o cursinho preparatório, que permite que ela tenha a licença de detetive). Isso porque nas horas das aulas ela já está investigando um caso de venda de obras de arte por um guru charlatão, caso que vai dar a ela um emprego em um escritório tão falido quanto ela, que ganha mesmo a vida se apresentando em um parque temático do velho oeste, espécie de "Westworld" depois da tragédia (com perdão do exagero).
"O que é interessante sobre esta série, em como é escrita, é que os personagens são muito mais confusos e complicados que você costuma ver na televisão. Em geral, é tudo para que os personagens façam a escolha mais inteligente. Mas esses caras estão constantemente dando um tiro no pé. O tempo todo, assim como todos os outros personagens", diz Arquette em entrevista para esta coluna de Splash.
Um típico, ou trágico, almoço de família
Com humor ácido, "Deserto Selvagem" tira o melhor do talento de Patricia Arquette (importante não esquecer seu trabalho inesquecível "Boyhood: Da Infância à Juventude", que lhe rendeu um Oscar de melhor atriz) e do elenco em uma trama que começa com um típico almoço de família em uma mansão de Los Angeles.
Crianças na piscina, o marido Denny (Matt Dillon também surpreendente no tom da comédia), Peggy atrapalhada para tentar servir os convidados, cuidar e ajudar a mãe (uma Bernadette Peters diferente do que costumamos ver), os irmãos e os convidados.
Até que alguém bate à porta. É a polícia. E o frugal almoço de família se torna uma catástrofe rocambolesca. Denny começa a tentar enfiar ralo do triturador de comidas quilos de maconha, drogas sintéticas e outras substâncias que tira de tudo quanto é cantinho da casa. Em vez de se chocar, Peggy apenas diz, atrapalhada: "Eu falei para você alugar uma casa para guardar tudo isso, uma casa depósito".
Parece um detalhe bobo, mas é aí que entendemos. A questão não é o "trabalho" de Denny, mas sim que ele é outro atrapalhado que, criminoso ou não, devia ter organizado melhor o "negócio" da família. É como Peggy reage, hilária e perdida, ao caos que nos entrega que não é um thriller, uma série antidrogas, tribunal.
Ou que vai julgar moralmente seus protagonistas, mas sim que vai revelar os percalços de personagens que, ainda que pareçam surreais, são muito reais, falham, avançam, mas também se autossabotam, são brilhantes, mas fazem escolhas estúpidas.
Depois do início digno de "O Incrível Exército de Brancaleone" (clássico de 1966, do italiano Mario Monicelli, que merece ser visto e revisto), corta-se para o presente e vemos uma Peggy exausta, trabalhando como "atriz" em um espetáculo de quinta categoria no tal parque temático, vestida de mocinha do velho oeste.
Ela tem dois irmãos, Stewart (Keir O'Donnell.) e Dianne (Christine Taylor), que são mais funcionais e tentam levar a vida mais pragmaticamente e se desesperam com a forma com que a irmã foge da realidade. E o marido, Denny, não ajuda muito nesta missão. "Esses personagens são divertidos e engraçados porque são reais, sabe? E há tanta história boa por trás e os roteiristas, a história é parecida com a deles.
A personagem de Peggy é baseada na irmã dela (Nanch Fichman), e o personagem de Danny foi inspirado no marido. Há luz e há sombras nos dois. E Danny é constitucionalmente incapaz de ser honesto. Isso é importante. Ele acredita estar no caminho certo", comentou Dillon em conversa com a coluna.
Para o ator, indicado ao Oscar por "Crash - No Limite", é justamente a capacidade de se reinventar, mesmo por vias tortas, a grande questão de "Deserto Selvagem". " O que também é divertido é que eles podem tomar uma decisão ruim após a outra, mas eles são engenhosos e são sobreviventes", completa.
Criada e escrita por Nancy Fichman ("Nurse Jackie", "Damages"), Katie Ford ("Miss Simpatia") e Jennifer Hoppe ("Grace and Frankie", "Nurse Jackie"), "Deserto Selvagem" tem inspiração, como comentou Dillon, na própria irmã de Nancy, que também inventava cada hora uma grande saída para seus problemas e queria ser detetive particular. "Em determinado momento, ela desistiu e outra coisa veio", comenta Nancy a Splash.
Mas Peggy não desiste e seu caminho é torto, mas tem humanidade, humor e, com seus episódios curtos e certeiros, ainda que errantes, valem a primeira temporada e deixam a vontade, e várias pontas abertas, para a segunda temporada.
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