Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
No cinema, Zé Celso também (re)existiu, transgrediu e influenciou gerações
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Ao se pensar rapidamente sobre a presença de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, no cinema brasileiro, mais que em títulos e números, é importante ter em perspectiva que, além dos filmes em que atuou, que dirigiu e roteirizou, o legado do dramaturgo é sim grande. Afinal, gerações de atores, autores, diretores, encenadores e outros profissionais não só passaram pelo Teatro Oficina (a companhia fundada por ele e comandada até sua partida) como levaram os aprendizados e influência para os sets, tanto os de cinema quanto os da TV.
O Oficina, ainda nos anos 1970, começou a registrar em película não só seu processo criativo como os espetáculos, o que resultou em experimentação de linguagens, curtas, longas, além de um grande acervo. Parte dele foi doado pelo grupo à Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em 1985, e parte integra acervo Teatro Oficina, com mais de mil horas de material que foi catalogado pela pesquisadora Isabela Oliveira.
A lista de atores que passaram pelo Oficina é extensa e inclui nomes como Leona Cavalli, Bete Coelho, Alexandre Borges, Reynaldo Gianecchini, Fernando Alves Pinto, Marília Pêra, Fernanda Montenegro, Othon Bastos, José Wilker, Marieta Severo, Tarcísio Meira, Zezé Motta, entre tantos outros. Sem contar cineastas, como Fernando Coimbra, Jean Genet, Helena Ignez, Marcelo Sebá, Lírio Ferreira, Mathias Mangin.
Cada um deles, e tantos outros, levaram e levam consigo os aprendizados, transgressões e experiências que tiveram com um dos maiores nomes não só do teatro, mas da arte brasileira.
Se a dedicação de Zé Celso ao teatro era total, no cinema há destaques que valem ser mencionados. Ele só protagonizou seu primeiro filme em 2019, quando viveu um contrabandista escrachado em "Horácio", de Mathias Mangin, mas sua carreira nas telas começou muito antes, nos anos 1970, quando filmou um curta-metragem que retrata os processos criativos e bastidores do Oficina.
Ainda em 1971, em um dos períodos mais repressivos da Ditadura Militar, assinou o roteiro de "Prata Palomares", dirigido por André Faria (co-autor do roteiro). O longa foi selecionado para participar da Semana da Crítica do Festival de Cannes de 1972, mas o governo militar proibiu a exibição do filme, que tratava da guerrilha e da tortura.
Com Ítala Nandi, Otávio Augusto e Renato Borghi (um dos fundadores do Oficina), "Prata Palomares" conta a história de dois guerrilheiros que, depois de derrotados por um regime ditatorial, invadem a igreja de uma pequena cidade chamada Porto Seguro. Eles criticam o conservadorismo e querem mudar a realidade e a sociedade. Um deles se disfarça de padre e acaba mergulhando em uma espiral de loucura, cercada por torturas, violência e crises psicológicas Ele se torna um líder religioso que funda um novo estado messiânico chamado Paraíso Agora, traindo seus ideais revolucionários.
Com forte influência da liberdade de criação do Oficina, "Prata Palomares" tem linguagem não linear, que traz os ecos do Cinema Novo, do Cinema Marginal, além de trazer a contestação, a influência do tropicalismo, a união, e o choque, do sagrado e do profano, o olhar crítico sobre a formação da sociedade brasileira, tantas vezes apontada como passiva, conformista e conservadora. Convidado cinco vezes para participar de Cannes, todas negadas pelos censores da Ditadura, foi finalmente liberado em 1977 para ser exibido no exterior e, em 1979, para exibição em território nacional, quando foi premiado no Festival de Brasília.
Por seu histórico, é um filme raro, nada unânime, mas documento importante do período e uma das provas que tanto Zé Celso quanto o Oficina jamais se calaram, mesmo em tempos em que isso significava de fato perigo de vida.
Dois anos depois de "Prata Palomares", Zé Celso atuou em "Um Homem Célebre", que marcou sua estreia como ator no cinema. Dirigido por Miguel Faria Jr., o filme é baseado em um conto de Machado de Assis e retrata as agruras de um músico popular que, no fundo, sonha em pertencer ao universo da música clássica.
O dramaturgo foi preso e torturado em 1974. Logo em seguida, seria exilado em Portugal e Moçambique e só voltaria ao Brasil em 1978, quando iniciou sua batalha para reerguer o Oficina. Em Portugal, criou o grupo Oficina-Samba e, em 1975, dirigiu o curta-metragem "O Parto", documentário sobre a Revolução dos Cravos, além de "Vinte e Cinco", em que documentou a independência de Moçambique.
Zé Celso nunca se viu ou definiu como um resistente, mas sim um (re)existente. Para ele, estética, ética, política foram sempre a mesma coisa. Como afirmou em entrevista a José Gustavo Bononi, na revista DAPesquisa, detestava a palavra resistência. "Jamais resisti eu sou para (re) existência, se ocorre um fato novo eu não vou resistir diante dele, eu vou replicar ele, aquele que sofreu aquele golpe vai morrer e eu vou renascer, vou ressuscitar, vou criar uma outra vida, vou (re) existir, essa palavra resistência ela leva a um travamento da criação muito grande, a gente nunca resiste a gente tem que ser irresistível e resistível, a gente tem que recriar sempre, (re) existir sempre, mudar transformar, transformar, transformar, se aquela estratégia foi abatida você utiliza outra, utiliza não, você cria outra."
E foi recriando sempre que seguiu, em paralelo à carreira no teatro, criando no cinema. O vasto material registrado pelo próprio Oficina é prova disso. Sem contar que o grupo foi um dos pioneiros ao utilizar a linguagem audiovisual em suas montagens, borrando os limites entre a ficção e o documental, transmitindo os espetáculos para a plateia, que podia ver o que se passava em diferentes pontos do teatro oficina.
Para completar, o Oficina foi a primeira companhia brasileira a transmitir um espetáculo pela internet, a montagem de "Boca de Ouro", em 1999. O canal do Yuotube do Oficina é fonte extensa das experimentações e criações audiovisuais da companhia.
De volta ao cinema, em 1982, Zé Celso dirigiu, em parceria com Noilton Nunes, o "Rei da Vela", o filme, que trazia trechos da remontagem da peça, realizada em 1971. Vale lembrar que a montagem original de "O Rei da Vela", escrita em 1933 por Oswald de Andrade, é de 1967, ano em que a censura no País era implacável e em que a peça revolucionou o teatro brasileiro.
Na versão para o cinema, Renato Borghi repete seu papel dos palcos e vive Abelardo 1, o agiota que sonha em se tornar um magnata ao abrir uma fábrica de velas em plena crise econômica, quando os brasileiros não podem sustentar suas contas de luz. Abelardo 2 é vivido por José Wilker na versão para as telas que traz o espírito do tempo, com a influência do tropicalismo, do Cinema Novo, das mudanças pelas quais o Brasil passou ao longo das décadas.
Às cenas do histórico palco giratório da montagem teatral, unem-se cenas externas, que trazem o Brasil então contemporâneo, mas que traz a herança de Getúlio Vargas, da Ditadura Militar, da antropofagia (ela, que sempre nos une). O filme marcou época, foi premiado no Festival de Gramado com os Kikitos de Melhor Montagem e Melhor Trilha Sonora, mas marcou também o fim da carreira do dramaturgo como diretor no cinema.
Zé Celso voltou às telas com mais destaque em 2005, em "Árido Movie", de Lírio Ferreira, em que vive Meu Velho, uma figura cercada por mistério que afirma ser o primeiro morador de uma região árida, que jura que foi escolhido por Deus para preparar o local para que o homem fosse capaz de morar ali e que é capaz de controlar a magia da água, o elemento mais misterioso do sertão.
Em 2015, o dramaturgo atuou em "Ralé", sob a direção da atriz e cineasta Helena Ignez. Em grande companhia, ao lado de Ney Matogrosso, Simone Spoladore, Djin Sganzerla, vive um dos convidados de um casamento nada comum.
Em determinada cena, ele lê um trecho de um texto sobre o teatro de Bertold Brecht, em que diz que se contenta em dar os fatos para que o espectador pense por ele mesmo, que seja "um público com os sentidos despertos e que tenha prazer em jogar com a sua reflexão."
É este eterno jogo com um público desperto e atento, capaz de superar as barreiras da narrativa linear e embarcar em um teatro, e um cinema, que atravessa os limites, que propõe Zé Celso.
Para mapear, entender, retratar o pensamento, o agir, a obra e a história de Zé Celso e do Oficina, os cineastas Tadeu Jungle e Elaine Cesar realizaram o documentário "Evoé! Retrato de um Antropófago". Em cartaz no Itaú Cultural Play, o filme traz a performance-monólogo do dramaturgo, que nos ensina sobre teatro, sobre política, sobre o corpo e o ser no mundo. Já Joaquim Castro e Lucas Weglinksi dirigiram "Máquina do Desejo", lançado em 2021, em que o processo e a história do Teatro Oficina Uzyna Uzona (como foi rebatizado) são ricamente documentados, em uma viagem deliciosa pelos caminhos percorridos pelo dramaturgo e sua trupe.
Um pouco antes, em 2019, Zé Celso finalmente interpretou seu primeiro protagonista no cinema, um escrachado e divertido contrabandista de cigarros, no longa "Horácio", dirigido por Mathias Mangin.
Rodado no bairro do Bixiga, que também abriga o Teatro Oficina, o filme conta a história de uma família nada convencional. Horácio tem 80 anos e precisa fugir do Brasil depois de ser condenado à prisão, mas precisa deixar tudo que tem para sua filha, a também nada ortodoxa vivida por Maria Luíza Mendonça. Apaixonado por seu capanga (vivido por Marcelo Drummond, o marido de Zé Celso), Horácio evoca divas como Norma Desmond de "O Crepúsculo dos Deuses", brinca e subverte as convenções, bem ao gosto de seu intérprete.
Em novembro de 2021, Zé Celso lançou a versão para o cinema de "Esperando Godot", dirigido em parceria com Monique Gardenberg. Entre a encenação e o documentário, o filme retrata a montagem do Oficina a partir do texto seminal do irlandês Samuel Beckett, que marcou a retomada da companhia após o hiato da Pandemia de Covid 19 e também a celebração de seus 63 anos. Nos palcos, a montagem de "Esperando Godot" de 2022 trouxe Alexandre Borges no papel de Vladimir, que desde Ham-Let (de 1993, quando viveu o Rei Cláudio) não encenava com o Oficina. Já no cinema, Estragão foi vivido por Marcelo Drummond e Vladimir por Gui Calzavara, vivendo os dois icônicos palhaços vagabundos que se encontram na encruzilhada entre a paralisia e a tomada da ação.
Em 2021, Zé Celso protagonizou seu último filme, "Fédro", ao lado de Reynaldo Gianecchini, que 20 anos antes havia passado pelo célebre corredor do Oficina. Exibido na Mostra de Cinema de São Paulo em 2021, "Fédro" é dirigido por Marcelo Sebá, que, como comentou em seu instagram, queria retratar o Zé Celso inspirador que ele conheceu.
Em um (re)encontro o ator e o mentor, o filme retrata o primeiro encontro entre os dois para a leitura do texto "Fedro", de Platão, que vai ser adaptado para os palcos por Zé Celso. Adiado, e talvez evitado, por mais de 20 anos, o encontro é uma reflexão sobre a vida, sobre o amor e, sobretudo, sobre a própria arte e sobre o papel do artista.
Intimista, em que o espectador é o quarto personagem, como quem se senta à mesa com o dramaturgo e o ator, e de Dina Sfat, onipresente em um retrato em preto-e-branco belíssimo na parede, "Fédro" é um mergulho no pensamento atemporal de Zé Celso. Um testamento involuntário, mas feliz e simbólico, de um artista que sempre (re)existiu e é, como afirmou o comunicado - declaração de amor da equipe do Oficina Uzyna Uzona nesta tarde, "uma forma vitoriosa do tempo."
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