Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Contraditório e provocador: a história de Oppenheimer, pai da bomba atômica
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
"Como cineasta, busco o ser humano em momentos dramáticos", comentou Christopher Nolan em entrevistas que concedeu à imprensa durante lançamento de "Oppenheimer".
Ao retratar a vida de J. Robert Oppenheimer, "o pai da bomba atômica", o cineasta britânico escolheu a dedo uma história que reúne drama e tragédia como poucas na História. Afinal, depois que as bombas atômicas foram lançadas sobre Hiroshima (Little Boy) e Nagasaki (Fat Man), no Japão, em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, a humanidade nunca mais foi a mesma e as definições do horror e do medo de que o homem pode destruir o mundo foram atualizadas.
É impossível dissociar a vida controversa do físico teórico (brilhantemente interpretado pelo irlandês Cillian Murphy) da História em si. E é exatamente nestas linhas que se cruzam que reside o fascínio de saber mais e descobrir um pouco de quem foi ele. Sua vida, obviamente, rende um grande drama, mas teve tons de tragédia e de épico e, exagerando um pouco, de mito.
Baseado na biografia "Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano" ("American Prometheus"), escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin, o filme, bem ao gosto e estilo de Nolan, não é uma cinebiografia linear com começo meio e fim didáticos e muito menos tem desfecho e com moral no final, ainda que traga uma provocação sobre como grandes personagens da História podem se deixar usar e serem usados, e descartados, pelas forças vigentes de cada momento histórico.
E os dois momentos históricos em que o filme se apoia para tratar da trajetória de Oppenheimer não poderiam ser mais dramáticos. De um lado, a ameaça da criação de uma bomba atômica pelos nazistas, cujas consequências eram imprevisíveis, mas certamente catastróficas. Do outro, a Guerra Fria e a ameaça de um conflito nuclear mundial.
A trama tecida por Nolan divide-se em dois eixos temporais que ocorrem em paralelo no filme, mas que dialogam, achatam o intervalo entre um tempo e outro e nos aproximam de Oppenheimer, o homem brilhante e carismático, mas também falho, egocêntrico, ambicioso, contraditório.
No primeiro eixo, o físico passa por um duro julgamento a portas fechadas que escrutina sua vida e investiga sua lealdade aos Estados Unidos e sua possível contribuição para os comunistas russos durante a Segunda Guerra, vazando segredos de estado sobre o projeto Manhattan, criado em 1942, que ele liderou e desenvolveu a bomba. Em Los Alamos, Novo México, abrigou uma pequena cidade, construída para receber toda a equipe e as instalações do projeto, que custou mais de US$ 2 bilhões.
No segundo eixo, que surge desde sua juventude e o período pré-Segunda Guerra, em que passou na Europa estudando e conhecendo os principais nomes da física quântica, como Niels Bohr (vivido por Kenneth Branagh, que tem duas entradas decisivas na trama e funciona como a voz do oráculo). Na primeira, Bohr profetiza e diz que "é preciso estar preparado para lidar com a cobra que surgirá quando você levantar a pedra". Que poder, ou maldição, traz e simboliza a tal serpente? Estará, como num prenúncio da tragédia, o jovem Oppenheimer preparado para lidar com o poder que vai libertar ao dar ao homem a bomba A, ou o "artefato", como era chamada?
Há ainda um terceiro eixo que ocorre após o final da Segunda Guerra: a sabatina que o almirante Lewis Strauss encara nos anos 1950, sob o olhar inquisidor de oficiais que investigam sua postura. O mais perto que o filme chega de ter um vilão personificado é vivido por um quase irreconhecível Robert Downey Jr. que, além do escrutínio por que passa, interage com Oppenheimer em momentos decisivos.
As cenas deste eixo narrativo e temporal foram filmadas em branco-e-preto, em um recurso que, para além do estilístico, ajuda minimamente, o espectador a se situar nos tantos vai-e-vens da trama, nada didática, como todo filme de Nolan faz questão de ser.
Quem acompanha a filmografia do diretor já sabe que narrativas lineares não são seu forte. Do seminal "Amnésia" (2000) ao histórico " Dunkirk"(2017), passando por "Interestelar" ( 2014) e "Tenet"(2020), se é possível complicar, ele vai complicar. Sobre isso, aliás, Nolan sempre diz que, "se não entende meus filmes, não tente entender, mas sim sentir". Neste caso, o que se sente é uma imensa angústia diante da, se não culpa, mas responsabilidade e desassossego que Oppenheimer encara a partir do momento em que a bomba atinge o Japão, dando fim à Guerra.
Na sequência mais sinestésica e simbólica do filme, a contraposição entre a emoção, a comemoração, choros, risos e o silêncio que incomoda, joga o espectador no buraco negro para o qual que o cientista foi sugado. Como celebrar um "artefato" que trouxe o horror e matou em instantes mais de 70 mil pessoas somente em Hiroshima? Nesta sequência, Nolan conta com o imaginário coletivo, que tem guardado na memória as imagens desse horror.
O trabalho de som e o formato IMAX contribuem para transportar o público para este abismo sensorial em que o físico mergulha e comprovam que o preciosismo técnico do diretor tem sua razão de ser. É grandioso e megalomaníaco o que Oppenheimer vive, mas é também intimista e pessoal. A densidade do ar, de sua vida e do filme ganha um peso quase insuportável.
Quem esperava um filme-julgamento sobre as questões morais e éticas de Oppenheimer pode se frustrar. Mas, para quem sabe quem que Nolan vem para complicar e jamais explicar, o roteiro deixa claras as contradições de um homem que encarou suas convicções durante e, principalmente, depois de, tal e qual o mito de Prometeu ao dar à humanidade o fogo, um poder incomensurável.
De fato histórico muito relevante, Nolan revela para o público menos inteirado da biografia do físico o que cientistas já sabiam: Oppenheimer foi o grande líder do Projeto Manhattan, que de 1942 a 1945, em Los Alamos, Novo México, abrigou uma pequena cidade, construída para receber toda a equipe e as instalações do projeto de criação da primeira bomba atômica da história, que custou mais de US$ 2 bilhões e envolveu os esforços de milhares de profissionais.
Sua maior contribuição para projeto Manhattan foi ter sido capaz de formar um time de cientistas geniais que trabalharam juntos para criar o "artefato". O trabalho durou quase três anos e culminou com a primeira explosão de uma bomba nuclear, em 16 de julho de 1945, em Los Alamos.
A ação que Oppenheimer batizou de Trinity (em referência ao poema do britânico Jonh Donne "Holy Sonnets: Batter my heart, three-person'd God" - Bate em Meu Coração, Deus de Trina Pessoa) é um dos pontos altos do filme de Nolan. Há quem afirme que, para além do brilhantismo e da capacidade de agregar e coordenar grandes nomes da ciência para a criação da bomba A, Oppenheimer era movido pela vaidade e pela ambição.
Se Oppenheimer abraçou sem restrições a criação da bomba atômica, diante das consequências nefastas dos bombardeios no Japão, passou a se opor ao uso das bombas nucleares, a temer uma Guerra Nuclear e a se opor mais ferrenhamente à criação da Bomba H, de hidrogênio, 600 vezes mais poderosa e letal que a Bomba A. Terminada a Guerra, o projeto Manhattan foi diluído e foi criada a Comissão de Energia Atômica, à qual o físico esteve à frente.
De prestigiado e respeitado cientista, ele passou a ser uma força contrária, visto como uma ameaça e, no auge da caça às bruxas do macartismo, em 1954, foi acusado de contribuir para os soviéticos. É no ápice deste momento que encontramos Oppenheimer no filme de Nolan, encurralado por um julgamento a portas fechadas que expôs sua vida profissional, mas principalmente pessoal, em nome da perseguição a todos que, como ele, ousaram se envolver com os ideais comunistas em algum momento de suas vidas ou simplesmente tinham uma visão menos binária do mundo.
A liberdade de pensamento que Oppenheimer exerceu, crucial para ele ser o articulador que era, virou arma na mão dos acusadores. Tudo foi citado, de suas participações nas reuniões de esquerda a seu envolvimento com a médica Jean Tatlock (Florence Pugh), passando por sua contribuição para as frentes de esquerda da Guerra Civil Espanhola e seu casamento com a bióloga Kitty (Emily Blunt), que, assim como Tatlock, havia sido filiada ao partido comunista.
As excruciantes sessões do julgamento, em que foi exposto para escrutínio moral e político, não discutem a ética da corrida nuclear ou do uso das bombas. O absurdo da situação ganha ares de pesadelo kafkiano à medida que Oppenheimer é cada vez mais encurralado.
Ao final, Oppenheimer foi inocentado da acusação de ser um colaborador dos soviéticos, mas teve sua licença de segurança revogada (perdendo o acesso a informações confidenciais e não podendo mais participar de projetos que envolviam segredo de estado). Em um fim melancólico, voltou para Princeton, dirigiu o Instituto de Estudos Avançados até pouco antes de sua morte, em 1967, por conta de um câncer de garganta (era fumante inveterado).
Foram precisos 55 anos para que o governo americano o declarasse inocente e revogasse a suspensão de sua licença de segurança, em dezembro de 2022. A página da História, no entanto, está longe de ser fechada. Em tempos de Guerra da Ucrânia e da volta da paúra de uma nova guerra nuclear, a dúvida sobre o que a humanidade vai fazer com o grande poder que detém ainda paira no ar.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.