Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Só 'um filme de brinquedo'? 'Barbie' rompe hipocrisia disfarçada
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
A pergunta é tão óbvia quanto complexa. A resposta também. Afinal, por que gerações de meninas em todo o mundo amam a Barbie? Por que, ainda que existam exceções e não seja, obviamente, unânime, Barbie exerce esse fascínio? E o que ocorre com o "filme da Barbie", que se tornou um fenômeno que tingiu de rosa o mundo nos últimos dias?
Para começar, "Barbie", o filme, pode ser lido como um fenômeno transmídia, que não é só um "filme de brinquedo", mas também é. Não é só um filme, aliás. É um fenômeno que une cinema, consumo, marketing e, talvez mais do que tudo, comportamento. Desde sua origem, no final dos anos 1950, momento em que a revolução feminista sacudia o mundo, Barbie foi um símbolo e galvanizou os desejos de gerações de meninas e mulheres que queriam mais do que ser apenas donas de casa.
Um dos motivos sempre defendidos pelos que adoram o universo cor-de-rosa da boneca mais célebre da História é o fato que, ao contrário das bonecas até sua criação, Barbie não é um bebê e permite às meninas brincar de ser (e inspirar a ser) mais que uma mãe. A Barbie trabalha, tem uma casa, uma cozinha superequipada, dirige, patina, esquia, nada, acampa, tem um namorado e até filhos, veja só.
Em pleno 2023, esta discussão parece mais que ultrapassada, mas em 1959, quando foi criada pelo casal Ruth Handler e Elliot Handler, os criadores da Mattel, as bonecas se resumiam a bebês, as brincadeiras se resumiam praticamente a serem donas de casa.
E, como diz o prólogo do filme, que também é o teaser que a Warner divulgou nas redes como parte da campanha de lançamento do longa, ser mãe é bom, mas não o tempo todo e ser só mãe sempre. "Pergunte à sua mãe", diz o texto em off (a propósito, a narração do filme, em tom de fábula contemporânea, é de Helen Mirren).
"Barbie" é perfeito para que as mães da faixa dos 40 e 50 assistam com suas filhas (e netas, para as que foram avós mais jovens) e debatam justamente o quanto a boneca, a Mattel, a Marvel e o cinema e, por fim, a sociedade avançaram ou não.
O filme é o clássico enigma: é um filme disruptivo em que a diretora Greta Gerwig conseguiu invadir o sistema e hackeá-lo para, ao fazer piadas sobre suas contradições e celebrar seu mundo de fantasia, questionar justamente a hipocrisia disfarçada de inclusão?
Afinal, no final, estamos falando de "apenas um brinquedo", não? Ou é um filme que, disfarçado de ser crítico e de debochar da lógica consumista e machista do mundo, das corporações e do próprio marketing imenso que cerca o filme, na verdade, celebra o universo cor-de-rosa de Barbie, onde, somente lá, as mulheres conquistaram tudo e são tudo que sempre sonharam ser?
É justamente esta dicotomia que faz de "Barbie" um case (para usar um termo da publicidade). Gerwig, convidada a dirigir o filme, já afirmou que temeu não dar conta da tarefa. Afinal, como fazer um filme da menina dos olhos de uma empresa que vende brinquedos, não desagradar esta empresa, não ir contra os preceitos da empresa e, ao mesmo tempo, ser fiel ao cinema provocador, contestador e feminista que ela sempre fez? Tarefa difícil a de equilibrar todos os pratos neste jogo.
Mas pode-se afirmar que ela conseguiu. Ainda que com ressalvas sobre o desenvolvimento da trama em si, Gerwig e Noah Baumbach (companheiro da diretora, com quem ela sempre trabalha, já atuou no longa "Francis Ha", por exemplo) criaram uma história que nos propõe o universo mágico da boneca, a Barbieland, onde todas as Barbies e as mulheres conquistaram tudo que queriam, em que são elas que comandam (a presidente é uma mulher negra, a ótima Issa Rae), conforme elas foram levadas a acreditar.
O Ken, ou os Kens, é só um acessório, ótimo e especialista em "praia". Ao contrário das Barbies, que são "tudo que querem ser", Ken é só Ken mesmo. E é diante do inconformismo de ser um eterno coadjuvante que "Ken Ryan Gosling" vai se rebelar.
Já a Barbie de Margot Robbie é só Barbie mesmo e parece estar feliz com isso. Ela é a Barbie Estereotipada (ou Estereotípica). Quando se pensa em Barbie, é nela que a gente ainda pensa, não? Apesar de hoje haver Barbies morenas, negras, asiáticas, ruivas, cadeirante, PCD, com vitiligo, plus size, com mais de 200 profissões, é na Barbie loira, longilínea e que nunca desce do salto, mesmo descalça, a primeira imagem que vem à mente é esta Barbie.
E como, mesmo com toda a diversidade que a Mattel trouxe tanto em suas linhas de brinquedos quanto nas animações (em menor escala, mas há vários longas em animação já lançados), realmente mudar este estereótipo ou pelo menos avançar na questão da Barbie mais diversa, antenada aos movimentos e anseios da sociedade que se transforma e avança?
Ora, exatamente como fez Ruth ao ver que sua filha, Barbara, fazia bonecas de papel e as vestia e criava profissões para elas, olhar para o mundo, ouvir o que ele tem a dizer e aplicar. Se as meninas dos anos 1950 queriam uma boneca adulta (ou jovem) para se espelharem, as mulheres e meninas de hoje querem que a boneca agora extrapole o mundo cor-de-rosa em que vive, ganhe sua versão de carne e osso, caia na real e bote literalmente os pés no chão.
Curioso, não? Mudar para não mudar? Seria mudar, incorporar avanços, para, no fundo, quando se pensar na Barbie, continuarmos a pensar na Barbie loira e (quase) perfeita de Margot Robbie? Não há resposta simples, nem simplista.
Um à parte: Ruth inspirou Barbie na boneca alemã Lili Bild, inspirada em uma personagem dos quadrinhos que era uma jovem independente, solteira, sexualmente livre e economicamente autônoma, que causava polêmica por conta de seu comportamento. Fez tanto sucesso que ganhou sua versão boneca para homens e era vendida em tabacarias e afins, mas as meninas e mulheres passaram a querer uma. Foi em uma viagem de férias que Ruth percebeu o potencial da boneca e, pensando em sua filha, Barbara, que criava suas bonecas de papel, levou algumas Lillis de volta para casa, aprimorou a ideia e criou sua Barbie para meninas.
O fato é que, assim como Ruth e os executivos da Mattel, ao longo das décadas, ouviam o que a sociedade lhes dizia e devolviam isso em forma de novos lançamentos, hoje a própria Mattel, o cinema, a moda, as marcas que orbitam no universo Barbie e no feminino, tentam encontrar um equilíbrio entre ouvir, trazer as mudanças, mas também propor seu modo de pensar, seus produtos e suas histórias.
"Barbie", como é óbvio, não é só um filme. Em sua artificialidade autêntica, Gerwig traz críticas sutis e outras mais óbvias sobre um sistema de pensamento que abre espaço para as mulheres ocuparem cargos de poder, mas não muito.
Ao mesmo tempo, o marketing mastodôntico, tanto o planejado quanto o voluntário, cria ondas rosas que até incomodam os que sempre pensaram "fora da caixa" e não se conformam que, em pleno 2023, mulheres e meninas estão vestindo rosa para ver "só" um filme.
O fenômeno Barbie vai continuar forte, instigando e intrigando e, pelo menos por ora, rendendo, já que as ações da Mattel valorizaram 16% só no último mês e as vendas da boneca e seus derivados devem bater todas as metas neste ano.
O cinema que alimenta o marketing, que alimenta o cinema, que alimenta o consumo, que alimenta o imaginário e o comportamento, que alimenta o marketing, que alimenta o cinema. O ciclo pode ser virtuoso, com novos elos na corrente, como de fato novos filmes de uma franquia que pode ter o próprio filme da Barbie presidente Issa Rae, do Ken, da Barbie Estereotipada e, por que não, da própria mulher real.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.