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Flavia Guerra

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Opinião

Do crime ao estrelato, 'Rhiengold' retrata a vida mítica do rapper Xatar

Alguém cuja primeira recordação de vida é a imagem de uma prisão não vem a este mundo para ter uma trajetória comum. Esta é, a propósito, a primeira lembrança da infância do rapper curdo-alemão Xatar, um dos maiores nomes da música europeia, que virou tema de filme, "Rheingold - O Roubo do Sucesso", de Fatih Akin, um dos cineastas mais interessantes do cinema alemão contemporâneo, em cartaz no Brasil a partir desta semana.

Para chegar até a fama e ter seu talento reconhecido, Giwar Hajabi, o nome real de Xatar (que em curdo significa perigo), traçou um caminho realmente digno de cinema. A prisão de sua infância é a que ele ficou com os pais, que se opuseram à Revolução do Aiatolá Khomeini no Irã e acabaram presos e torturados. Antes disso, quando sua mãe ainda estava grávida, eles se refugiaram nas montanhas, onde construíram uma comunidade. Ainda grávida, a aldeia foi atacada pela polícia e sua mãe se escondeu em uma caverna. Ali, acabou dando à luz sozinha entre morcegos e à escuridão.

Da prisão, seu pai, Eghbal Hajabi, que era um professor de música, compositor e maestro de prestígio no Irã, conseguiu contatos para fugir para o Iraque e, então, Paris. De lá, partiu com a família para Bonn, na Alemanha, para trabalhar na orquestra da cidade.

Trailer de Rhiengold

Entre a adaptação a uma cultura completamente diferente, aos desafios da adolescência, Giwar teve de encarar a ausência do pai, que deixou a casa da família após se apaixonar por outra mulher. O espaço deixado pela figura paterna passou a ser ocupado por amigos e pelas ruas. Assim, Giwar acabou se envolvendo com a venda de drogas.

Da adolescência como jovem delinquente ao mandado de prisão por tráfico foi um pulo

Pulo para a Holanda, na verdade, onde ele acabou se envolvendo com um roubo, tão genial quanto mambembe, de uma carga de ouro, que, entre outras coisas, seria usada para bancar a gravadora que ele sonhava em abrir.

Xatar foi parar na prisão e foi lá que finalmente teve tempo para gravar, escondido, seu tão sonhado primeiro álbum de rap "Alles oder Nix" ("Tudo ou Nada"). A música cheia de protesto, permeada por crítica à guerra, à forma como os jovens são negligenciados e à dura vida dos refugiados, se espalhou rapidamente e ele se tornou não só um dos maiores músicos da Europa como um empresário de sucesso, dono de gravadora (a Alles oder Nix Records), restaurante, bar e afins.

No filme, baseado na autobiografia de Xatar, o rapper é interpretado por Emílio Sakraya, ótimo no papel. Apesar da "vida loka" do protagonista, Fatih Akin optou por uma narrativa clara, com flashbacks que pontuam a trama, mas não confundem o espectador. Famoso por realizar filmes que equilibram muito bem a violência, o humor, o drama e até mesmo o thriller, o cineasta faz com "Rhinegold" um de seus filmes mais lineares, ressaltando a figura de Giwar e a gênese do personagem Xatar.

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O ator Emilio Sakraya vive o rapper Xatar no ótimo "Rheingold", do cineasta alemão-turco Fatih Akin
O ator Emilio Sakraya vive o rapper Xatar no ótimo "Rheingold", do cineasta alemão-turco Fatih Akin Imagem: Divulgação

Li a biografia dele e fiquei muito tocado pela forma como ele foi generoso, quantos gêneros sua história cruza e que vida louca esse cara viveu. E eu fiquei tipo: Ok, se eu pudesse transformar esta história em algo visual, poderia ser um filme muito louco, contou o diretor em entrevista a Splash

Inteligente a decisão de não contar a vida após a fama, já conhecida pelo menos dos europeus e mais passível de cair no lugar comum, ainda que "Rhiengold" beba na fonte dos clássicos do cinema que contam a gênese de grandes figuras do crime.

"Tratei a biografia dele como literatura. Eu já tinha adaptado literatura antes. E é como traduzir. Isso é o que você faz. A gente traduz. Você tem a narrativa da prosa, da literatura. E a traduz para a arquitetura do roteiro. Isso é o que se faz. É isso que eu gosto de fazer", completou Fatih Akin.

"Rhiengold" tem charme, ritmo e é bem resolvido

No entanto, é estilisticamente menos ousado se comparado com filmes como "Contra a Parede", que deu ao diretor o Urso de Ouro em Berlim em 2003 ou "O Bar da Luva Dourada", uma verdadeira porrada cinematográfica.

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Mas a simplicidade aqui se justifica. "Rhiengold" se comunica muito bem como grande público e não por acaso é o filme de maior sucesso de bilheteria de Fatih, um dos grandes destaques do cinema europeu da última temporada, com mais de um milhão de espectadores somente na Alemanha.

Pode não ser meu melhor filme, mas é o de maior sucesso com certeza. E estou feliz com isso, comentou o diretor

Sobre a relação com Xatar, que também assina o roteiro, Fatih afirmou que foi um processo tranquilo. "Ele foi muito colaborativo. Ajudou muito e absolutamente confiava em mim. Adaptar o livro não foi nada difícil porque eu já tinha feito isso antes. Uma vez que você decide, você deve ser desrespeitoso. Você deve ser respeitoso, mas você também tem que ser desrespeitoso. É como se você tivesse que ser como Tarantino. Você apenas tem que fazer o filme. Preciso ser fiel ao cinema. Essas são as únicas regras", declarou o cineasta.

O cineasta turco-alemão Fatih Akin, em entrevista ao Splash UOL, sobre o filme "Rhiengold"
O cineasta turco-alemão Fatih Akin, em entrevista ao Splash UOL, sobre o filme "Rhiengold" Imagem: Flavia Guerra / Splash UOL

Colaboração estratégica

Contar com a colaboração de Xatar também é estratégico quando se pensa que os personagens de "Rheingold" não só são pessoas reais como também ainda estão "na ativa". "Sim, claro, eles são pessoas reais. Gente de verdade. Alguns deles são criminosos. Você não quer ter problemas com eles, sabe, não mesmo", ponderou o cineasta.

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Então, você tem que encontrar outra maneira para não desrespeitá-los. Você tem que encontrar o equilíbrio entre ser respeitoso com o mundo que você está retratando e, ao mesmo tempo, ser desrespeitoso e respeitar o cinema, concluiu

Alemão de família turca, Fatih era de fato a figura perfeita para levar a história de Xatar ao cinema. Seu olhar sempre atento aos choques, mas também a simbiose entre culturas tão diferentes como a oriental e a ocidental, rende sempre um cinema cheio de vida e pulsante.

Quando questionado sobre o que sua bagagem cultural trazia para um filme que trata justamente da vida de um menino refugiado crescendo e aprendendo a sobreviver em um universo novo e estranho, ele comentou:

"Eu sempre fui beneficiado por ter sido criado entre duas culturas muito diferentes, cultura alemã e a cultura turca. A Alemanha era como a vida cotidiana porque a escola estava na Alemanha, sabe, e meus amigos e meu grupo de colegas estavam na Alemanha, mas uma vez por ano, nas férias de verão, íamos para a Turquia e era como estar na Matrix. Era algo completamente diferente."

Na Turquia, as pessoas falavam outra língua, o clima era diferente, a comida era diferente, o comportamento era diferente. Quando você se torna um adolescente, conhecer garotas era muito diferente, muito diferente. De certa forma, não sei por quê, não sei bem o mecanismo por trás disso, mas isso me ajudou a me tornar um contador de histórias. Isso me ajudou a me tornar uma pessoa visual.

Assim como Xatar, Fatih fez da vida entre dois mundos uma força. "Absolutamente me beneficiei disso. No início da minha carreira, eu lia artigos na imprensa que diziam que eu não sabia onde pertencia, como se fosse uma vítima eterna. E isso não é verdade. Eu nunca fui uma vítima. Eu nunca tive a sensação de que não pertencia. E demorou um pouco para eu entender isso. Como eles queriam que eu pensasse. Mas sei exatamente onde eu pertenço. Eu pertenço a todos os lugares."

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Por fim, entre mitos e personagens reais, a história ganha mais uma camada importante na escolha do nome.

"Das Rheingold" ("O Ouro do Reno") é o nome da primeira das quatro óperas que compõem a épica "Der Ring des Nibelungen (O Anel do Nibelungo), tetralogia do genial músico alemão Richard Wagner, infelizmente notório antissemita. Em linhas muito gerais, "Das Rhiengold" conta a história da disputa pelo mítico ouro que descansa no fundo do Rio Reno (que atravessa Suíça, Alemanha, França e Holanda). Guardado nas profundezas do Reno pelas ninfas, quando transformado em um anel, tem a capacidade de dar a quem o possui riqueza e poder absoluto .

"Das Rhiengold", a ópera, é ouvida e citada pelo pai de Giwar em um chave do filme. É também este ouro, este sucesso, esta felicidade perseguida por muitos e por ele. É ainda uma piscadela irônica de Fatih para a xenofobia que existe em um mundo em que muitas vezes não se sabe como dividir o ouro da prosperidade com os considerados diferentes, estrangeiros, estranhos.

Uma das maiores composições da música alemã, inspirada na mitologia germânica e escandinava e em uma obra que nasceu ainda no século 12 (o poema épico Das Nibelungenlied, A Canção dos Nibelungos) embala e conta a vida mítica de Xatar. Onde está o ouro do roubo e o ouro do Reno? Só as ninfas guardiãs deste ouro é que sabem.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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