Flavia Guerra

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Reportagem

'O silêncio matou Ângela', diz Isis Valverde sobre socialite assassinada

Quando Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre o caso de Ângela Diniz e afirmou "aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras", o poeta certamente se referia ao julgamento moral que a mineira sofria mesmo depois de sua morte.

Assassinada em 30 de dezembro de 1976 por seu companheiro Raul Fernando do Amaral Street, o Doca" Street, ela sofreu todo tipo de crítica da sociedade conservadora brasileira da época, que via em sua liberdade, seu estilo e sua postura uma ameaça.

Quarenta e seis anos depois do assassinato que chocou o Brasil, e do julgamento que deu a Doca uma sentença de apenas dois anos de detenção por ele "cometer o crime em legítima defesa da honra", o tema continua não só mais atual do que nunca, como ganha um filme.

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"Ângela", protagonizada por Isis Valverde e dirigido por Hugo Prata (de "Elis"), teve sua pré-estreia nacional no Festival de Gramado neste sábado (12), em noite de abertura do evento que destacou as mulheres no cinema e a luta contra o feminicídio.

Mas o filme não se concentra no julgamento e opta por trazer nos letreiros finais a informação sobre a sentença inicial e que, muito por conta dos fortes movimentos feministas, que contestaram a decisão, o Tribunal de Justiça do Rio anulou o julgamento e Doca foi novamente a júri. Da segunda vez, foi condenado a cumprir pena de 15 anos de prisão por homicídio, dos quais, apenas quatro cumpriu em regime fechado.

"Ângela" revisita novamente não só as condições que levaram ao assassinato como recria a intimidade do casal nas semanas que antecederam o crime, ocorrido após Ângela romper o relacionamento com Doca que, irado e inconformado, a assassinou com três tiros no rosto e um na nuca.

O diretor Hugo Prata e a atriz Isis Valverde conversam sobre o filme "Ângela" no Festival de Gramado 2023
O diretor Hugo Prata e a atriz Isis Valverde conversam sobre o filme "Ângela" no Festival de Gramado 2023 Imagem: Edison Vara Agência Pressphoto/ Divulgação

Para contar a história de Ângela e Doca Street (Gabriel Braga Nunes), o filme opta por uma narrativa que concentra o foco nos meses em que eles se conheceram e viveram uma paixão avassaladora que evoluiu para uma série de abusos e, por fim, culminou em um dos assassinatos mais famosos do Brasil.

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A equipe de "Ângela" em Gramado: o diretor Hugo Prata, a roteirista Duda de Almeida, as atrizes isis Valverde e Carolina Manica e o ator Emilio Orciollo Neto
A equipe de "Ângela" em Gramado: o diretor Hugo Prata, a roteirista Duda de Almeida, as atrizes isis Valverde e Carolina Manica e o ator Emilio Orciollo Neto Imagem: Edison Vara/ Agencia Pressphoto/ Divulgação

Escrito por Duda de Almeida, o roteiro oscila entre um início de romance tórrido com o drama de uma mulher que, ao pedir o desquite ao primeiro marido, foi obrigada a se separar dos três filhos e carregou a tristeza e a melancolia "no sorriso mais triste que alguém já teve", como observou Isis ao falar da personagem. "Eu ouvi isso de uma das tantas pessoas com quem conversei sobre ela. E foi um grande desafio para mim", declarou a atriz em conversa com a imprensa na manhã do domingo.

Depois de um início em que o espectador encontra uma "Ângela" exuberante, que dança encantadoramente na pista da festa da casa de Adelita Scarpa (Carolina Manica), que era casada com Doca Street, ocasião em que a jovem conhece o futuro namorado, o roteiro passa a se concentrar no cotidiano conturbado do casal.

Do início do namoro à mudança para a casa da Praia dos Ossos, hoje na cidade de Búzios (no filme, a praia fica na Bahia), a relação passa de tórrida e apaixonante para tensa e um eterno pisar em ovos de Ângela, que vai pouco a pouco perdendo seu brilho e sua voz, diante de arroubos de ciúme e violência de Doca.

51º Festival de Cinema de Gramado - Calçada da Fama com a atriz Isis Valverde | Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto
51º Festival de Cinema de Gramado - Calçada da Fama com a atriz Isis Valverde | Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto Imagem: Edison Vara/Agência Pressphoto / Divulgação

"O silêncio é o que matou ela. Se você perceber, a outra diz "fala comigo". Fala alguma coisa. E não tem, a voz não tem. Às vezes a gente não tem voz. Hoje a gente tem voz, mas naquela época, a gente não tinha mesmo. Não adiantava gritar que ninguém ia te ouvir", declarou a atriz Isis Valverde sobre a discussão levantada por "Ângela", em entrevista a Splash.

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Ontem, na abertura, quando o Hugo me chamou para falar antes do filme, o que eu não estava esperando, pensei no grito, que a gente vê as mulheres do filme gritando sem som quando o tiro acontece. Isso é muito simbólico porque é o grito que ela não deu. Isis Valverde

Para recriar a mulher que chocou e foi julgada pela sociedade conservadora da época por sua liberdade de ser, desejar e viver suas histórias, a atriz contou que foi buscar seus lugares de solidão.

"Fui buscando as minhas solidões e entendendo, obviamente, esse processo. O abuso vem da solidão porque o abusador vai isolando, vai calando, vai botando num lugar de medo. E no filme, o abusador não é só o Doca. É a sociedade. É a mãe falando que casamento é assim mesmo. É a amiga falando "ele vai cuidar de você". É o pai dos filhos dela falando que "agora, que você é uma mulher casada, você pode ver seus filhos. É uma lei que diz 'continua quieta'. E ela vai se fechando", comentou em conversa com Flavia Guerra, colunista de Splash.

Gabriel Braga Nunes vive Doca Street e Isis Valverde vive Ângela Diniz no filme que conta a história do assassinato da jovem nos anos 1970
Gabriel Braga Nunes vive Doca Street e Isis Valverde vive Ângela Diniz no filme que conta a história do assassinato da jovem nos anos 1970 Imagem: Divulgação

Se Ângela não era feminista no sentido militante da palavra, ela era uma das personificações do feminismo em si no sentido da liberdade de agir e desejar. "Talvez se perguntassem para ela se era feminista, ela dissesse não. Ela já era exatamente esse movimento em vida,vivo, andando, fazendo, causando esse incômodo da mulher existir, falar, se portar de uma forma em que ela acreditava, se vestir da forma que ela quer", analisou Isis.

"Sair com quem ela quiser. Isso é muito perigoso. Então, era um "vamos matar logo". Conversei muito com várias pessoas que conheceram a Ângela, e teve alguém que me disse: 'Ele a matou, mas se não matasse, outra pessoa iria matar. Ela era impossível. Usava vestidos decotados e transparentes, como se nada estivesse acontecendo, ela bebia muito, beijava mulher, beijava homem'. As pessoas falaram coisas tão baixas e num lugar tão esquisito e tão inapropriado que eu não conseguia falar", acrescentou a atriz.

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Foi por isso que ela morreu. Porque ninguém esticou a mão para ela naquele momento. É por isso que eu falo 'vamos dar a mão, vamos deixar de apontar o dedo, pois já tem muito dedo apontado para nós. Isis

Quem dá a mão, dentro do possível que a trama permite, para Ângela é a empregada doméstica Lili (Alice Carvalho) e a amiga Tóia (Bianca Bin). É com Tóia, que tem um casamento infeliz com o melhor amigo de Doc, o advogado Moreau (Emílio Orciollo Netto), que ela tem uma das poucas conversas sobre a liberdade sexual.

Em uma época em que o movimento feminista se expandia e a sexualidade feminina ganhava, finalmente, atenção e discussões que fugiam do moralismo, esses diálogos entre Tóia e Ângela, ainda que rápidos, sinalizam para o contexto da época.

Sexo e desejo

Questionada por Splash sobre como o sexto entra na trama, a roteirista Duda de Almeida respondeu: "Gostaria de substituir o sexo por desejo. Realmente a Ângela, até onde a gente sabe, não tinha um discurso feminista, a gente sabe que há as pessoas que têm um discurso e essa elaboração, mas tem pessoas que são a própria personificação do que o discurso diz, que é o caso dela. Inclusive, se alguém falasse que ela era feminista, talvez ela, só para provocar, diria que "não, não sou".

Duda pontuou que no filme todas as personagens mulheres têm desejos. "Por isso que eu quis substituir sexo por desejo. A coisa mais perigosa que uma mulher pode ter é um desejo próprio. A gente é feita para renunciar nosso desejo. Daí a Tóia se sentiu tão culpada porque sentiu tesão. Porque ela é casada. Isso é ruim.

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A Ângela não pode querer se separar, não pode querer viver sozinha com seus filhos. O livro que ela escreveu, quando o Ibrahim Sued (colunista social, que era seu namorado na época) diz que ela ia ser perseguida. Não pode nada? Não pode ter desejo nenhum? Então, esse é um filme em que todas as mulheres têm desejo e estão sendo constantemente podadas porque é muito perigoso uma mulher desejante", concluiu a roteirista.

Sobre o sexo na trama e a liberdade sexual, Isis comentou a Splash que "a mulher que assume seus desejos ainda é muito julgada". "Eu aprendi com o tempo. Não foi desde sempre. Não vou dizer que foi hoje não. Tinha muito medo de falar de sexo, de falar que eu não era virgem quando eu era jovem porque era de uma cidade do interior. Eu cresci com isso na minha cabeça, que em que eu dissesse que não era virgem, eu ia perder o meu valor. Então, eu tive encontros com Ângela. E todas nós. Se uma mulher falar que não passou por nada do que eu levantar aqui, ela está mentindo solenemente. Ou está em algum planeta, no mundo da Barbie", comentou Isis.

Eu sempre permiti me conhecer, sempre foi libertador para mim, mas sempre tive medo. Imagina a Ângela, de ser aquela explosão feminina liberdade de qualquer tipo de amarra diante daquela sociedade horrorosa. Isis

"Ângela", o filme, estreia em 31 de agosto e os debates certamente vão extrapolar as telas. No país que somente no último 1 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu, finalmente, por unanimidade, o uso da tese de legítima defesa da honra para justificar a absolvição de quem comete feminicídio, "Angela", para além da questão cinematográfica, reabre um novo capítulo e leva para o grande público a necessária discussão sobre o feminicídio e a liberdade feminina.

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