Adrenalina, morte e traição: vida de Enzo Ferrari, obcecado por velocidade
Por que contar a história de Enzo Ferrari no mundo atual? "Porque sua história é tão humana. Por mais operística que possa parecer. Quanto mais a gente se aprofunda na história do homem, mais universal se torna", afirma o diretor Michael Mann ao conversar com a imprensa nesta quinta (31) sobre "Ferrari", seu mais novo filme, que concorre ao Leão de Ouro no Festival de Veneza 2023.
Presentes à première mundial do filme estavam os atores Adam Driver e Patrick Dempsey. Os dois artistas tiveram a autorização do SAG-AFTRA, sindicatos dos atores de Hollywood, que atualmente estão em greve, o que impede a participação dos atores em eventos e entrevistas.
Eu e Michael nos conhecemos alguns anos antes de começar a filmar. Ele me mandou o roteiro. Todo mundo tem uma opinião e uma versão de quem Enzo Ferrari era. Mas o motor da história de Michael era basicamente movido a luto e as diferenças entre sua relação com Laura e Lina Lardi, em contraposição com sua mãe. Era uma história que eu não sabia muito sobre e me pareceu assustadora e, ao mesmo tempo, instigante. Adam Driver
"Para mim, a vida dele e suas contradições dizem muito respeito de como a vida é", completa Mann.
As contradições de um homem que trazia dentro de si oposições dignas de cinema também seduziram Mann, famoso por contar histórias densas e bem construídas, tanto no roteiro quanto cinematograficamente.
Enzo Ferrari (Adam Driver, em ótima forma) fundou a Scuderia Ferrari com sua mulher Laura (vivida por Penélope Cruz) e com ela viveu o auge dos primeiros anos e encarou a crise do verão de 1957, quando a empresa, já uma potência da Fórmula 1, corria o risco de falência por conta do gasto imenso que o ex-piloto tinha com sua paixão, as corridas.
Em certo momento, Enzo diz: "Eles [os rivais Maserati] correm para vender carros. Eu vendo carros para correr".
É exatamente a delícia e a dor de ser apaixonado pela adrenalina, pela velocidade e pelas corridas que "Ferrari" traz com rara autenticidade. A vida privada de Enzo poderia, a priori, desviar a atenção do universo das corridas e da adrenalina, mas é o paralelo entre um núcleo e outro que a trama ganha profundidade e relevância.
Enquanto encara a crise financeira, Enzo enfrenta, ao lado de Laura, uma crise profunda no casamento que começou com a morte do único filho do casal, o jovem Dino. O ex-piloto e empresário, ou "O Comendador", como era chamado, encontra algum alívio e alegria nos braços de Lina Lardi (Shailene Woodley), com quem tem secretamente um filho, o pequeno Piero.
Na verdade, não tão secretamente assim. Em Modena, no norte da Itália e onde vivem, todos sabem da história. Menos Laura. Drama maior não há.
E é o choque entre as duas estradas que garantem o grande drama de "Ferrari". Há um segundo grande drama: como ganhar atenção, trazer investidores parceiros, vender mais carros, sair da crise financeira para, então, poder continuar correndo? Correndo! No caso, disputando a Mille Miglia, lendária e perigosa prova que atravessa a Itália e cria mitos e perdedores. Vencer a prova é crucial para a sobrevivência da própria Ferrari.
Quem chega para ganhar a corrida e a atenção de Enzo é o piloto espanhol Alfonso De Portago (vivido pelo brasileiro Gabriel Leone). Jovem, destemido, filho de uma família de aristocratas da Espanha, nascido em Londres e criado na França, Portago surge como mágica em um momento crítico, em que o piloto oficial da escuderia morre em um teste.
Pronto para assumir o cargo e vencer, o personagem é decisivo na trama e Leone o interpreta com competência e carisma. Não há espaço para aprofundar as motivações, psicologia e emoções de Portago. Ele é tão dependente da adrenalina, obcecado com o sucesso e a vitória quanto Enzo. Na verdade, o lembra outro lendário piloto da Ferrari, Achille Varzi, uma lenda para quem ama automobilismo.
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Quero receberOusado, determinado, inteligente, calculista, competitivo e aristocrático. Este era Varzi. E assim era Portago, que ganhou, por motivos óbvios, a simpatia e confiança de Enzo. Seu papel é crucial para a trama e para a história da Ferrari e do automobilismo, mas alongar-se na história é, ao menos para os que não a conhecem, tirar o prazer de descobrir ao assistir ao filme.
Adaptado do livro "Enzo Ferrari: O Homem por trás das Máquinas", de Brock Yates, por Mann e pelo roteirista Troy Kennedy Martin, "Ferrari" tem cenas de velocidade e corrida, além dos tantos acidentes, que impressionam pela veracidade. Acidentes, luto e morte faziam parte não só da vida de Enzo, que também perdeu o irmão na Primeira Guerra, dois amigos cruciais nas pistas, entre outros, mas são intrínsecos ao automobilismo.
Leone, a propósito, não está em Veneza, pois filma atualmente a série "Senna", em que vive o piloto brasileiro, com estreia prevista para 2024 na Netflix. Produzida pela Gullane Entretenimento e dirigida por Vicente Amorim e Júlia Rezende, "Senna" obviamente tratará do perigo que o esporte traz desde sua gênese.
O mundo e a Fórmula 1, e o automobilismo na totalidade, mudaram muito desde as Mille Miglia de 1957, e continuaram mudando ao longo das décadas e de tantos acidentes fatais. No entanto, a adrenalina, a paixão, o poder, o dinheiro, o universo sedutor e, acima de tudo, a emoção e a humanidade continuam gerando dramas cinematográficos.
Ainda que pareça mais burocrático e até mais frio o universo da F1 atual, pelo menos para quem viveu os tempos de Enzo, Portago, Juan Manuel Fangio, Niki Lauda, Gilles Villeneuve, só para citar os ferraristas, há sempre uma fagulha prestes a explodir. E ela ganha toda sua potência em "Ferrari".
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