Michael Fassbender é um matador em crise no novo filme de David Fincher
David Fincher é dos raros diretores do atual cinema norte-americano capaz de conduzir fãs fiéis, que o cultuam feito os membros do "Clube da Luta", dispostos a amar seus filmes mesmo antes de vê-los. Dito isso, a expectativa em relação ao novo longa do cineasta, "The Killer" (no Brasil, "O Assassino"), que fez sua première mundial na noite deste domingo,3, no Festival de Veneza 2023, era imensa.
Tão imensa que até mesmo na sessão de imprensa houve aplausos do filme começar. Na sessão para convidados, recebeu seis minutos de aplausos ininterruptos, dissolvendo a tensão de que a espera não tinha valido a pena.
Para o alívio dos fãs ansiosos, "O Assassino" tem tudo que um David Fincher pode entregar. Direção precisa, competente, domínio do tema, casting impecável e trilha sonora bem utilizada (com muito Smiths em primeiro e segundo plano, uma vez que o matador protagonista adora ouvir a banda enquanto "trabalha"), entre outros pontos.
Vamos à trama. Michael Fassbender é o Assassino, que não tem nome ou, na verdade, tem dezenas de nomes, pois muda de identidade, cartão de crédito e passaporte como quem muda a música no celular.
Meticuloso, obcecado e obsessivo com organização (quase um caso de Transtorno Obsessivo Compulsivo) e métodico, ele encara o tédio com disciplina, yoga e organização. Além disso, repete sempre para si mantras que o ajudam a não desviar o foco de seus planos, ou trabalhos, e a não perder o fio da meada.
"Foque no plano, não tenha empatia, pois empatia gera vulnerabilidade, que gera fraqueza." "O mundo é dividido entre os poucos que dominam e o resto. Certifique-se de ser um dos poucos", ou algo similar, entre outras frases prontas que se repete feito orações, permeiam todo o roteiro, calcado em muito fluxo de consciência do protagonista.
Mas talvez uma das melhores frases, que resumem melhor não só o que o assassino pensa ter certeza, e que também se revelam o oposto, é: "Não existe sorte, nem karma e nem justiça". Para justificar seu "trabalho", que nunca mexeu um ponto na estrutura de quantas milhares de pessoas morrem e nascem todos os dias no planeta, ele tende a se convencer que está só realizando um trabalho, com profissionalismo, método, frieza e perfeição.
Justiça
Isso até que um dia a sorte, ou o azar, ou karma, ele falha. E a busca por justiça, ainda que por vias tortas, torna-se seu grande objetivo, missão, ou, na verdade, obsessão. Engenhosamente, "O Assassino" é aparentemente um filme sem grandes reviravoltas, surpresas e até mesmo tensão, o que pode parecer estranho na carreira de um cineasta que assina também filmes como "Zodíaco", "Quarto do Pânico" e "Seven - Sete Pecados Capitais".
Mas não se engane, a narrativa densa, permeada pela voz em off sempre monocórdia de Fassbender, quase sem um grande clímax é permeada de uma transformação profunda do protagonista.
É como uma fervura lenta, um cozimento em banho-maria, que engana, mas que transforma a matéria. Fincher é um diretor maduro, que domina, com a mesma obsessão de seu personagem (é famoso por realizar dezenas de takes em seus filmes), cada frame da história que quer contar.
Baseado na graphic novel de 12 volumes escrita por Alexis "Matz"Nolent, com ilustrações de Luc Jacamon, de 1998, "O Assassino" não só transporta o público para o universo do assassino, mas também para sua psique. Escrito por Andrew Kevin Walker, que é parceiro de Fincher de longa data e escreveu "Seven" (1998), o roteiro do longa, como já dito, usa e abusa do texto em off (ou voice-over ou narração) para construir a grande jornada de um assassino, a interna.
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Quero receber"Adoro o voice over, que eu já usei em outros filmes. Eu amo a narração como um recurso para contar uma história enquanto nos dão acesso a monólogos internos dos personagens. Mas minha questão aqui era sempre "por que, e o que, a gente sente quando nos deparamos com os pensamentos de um personagem que diz a verdade? Quando a gente sabe que tanta gente mente para si mesmo?", respondeu o diretor durante conversa com a imprensa em Veneza, quando questionado sobre os motivos de realizar um retrato tão particular de um matador de aluguel.
"Eu gosto da ideia de um assassino que tem que, para diferenciar o que faz de um serial killer, tem que, de certa forma, criar um código para si mesmo. E eu amo a ideia de que este código, ou os muros na parede que ele constrói, serem destruídos pelas suas necessidades, por ter que, como ele diz, ter um plano e nunca desistir deste plano e ter de improvisar ao longo de sua jornada", completou o cineasta.
De fato, os mantras e o muro de certezas que o assassino constrói para si, que o fazem ser, além de um exímio profissional que nunca erra, que é escravo de suas crenças e seu método, caem por terra justamente quando o sentimento entra em cena.
Seja amor, ódio, raiva, vingança ou até mesmo empatia, é o que ele sente que o tira de sua rotina obsessiva e o joga em uma jornada não planejada. Ao menos, não planejada com o rigor militar e obsessivo de sempre.
Esta jornada, aliás, começa antes, quando ele, contrariando a tese de que não existe como já dito, sorte, ou azar, se depara com o acaso. Este incidente, que pode ser um erro dele, mas também pode ser seu destino, é o agente provocador de todas as incertezas, imprevistos e violência que se seguem.
Intimista e calculista
Um assassino frio, quase psicopata, mas com uma humanidade que queima em fogo baixo internamente, faz do personagem um dos grandes papeis de Fassbender. "O Assassino" é um David Fincher quase intimista, calculista, mas complexo e humano, com todas as contradições, em que a única certeza, por mais que se construam lógicas, crenças, mantras e muros que supostamente nos protegem, é que não há certeza e controle nenhum.
Em tempo, Sophie Charlotte tem pouco tempo de tela, mas é personagem que permeia toda a trama e as motivações que fazem com que o Assassino avance em sua missão. A atriz está em ótima fase e estreia no início de outubro seu grande papel no cinema, em "Meu Nome é Gal", de Dandara Ferreira e Lô Politi.
Mas, "O Assassino" pode, e deve, ser o primeiro de muitos projetos no cinema internacional. É pena que, com a greve dos atores, nem Fassbender, nem Tilda e nem Sophie puderem estar em Veneza. A torcida é para que em novembro, quando o filme estreia, no dia 10, mundialmente na Netflix, a greve tenha já terminado e o elenco possa conversar sobre o trabalho memorável.
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