Flavia Guerra

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Adolescência e despertar de desejos: brasileiro 'Sem Coração' ganha Veneza

Um clássico dos festivais como Veneza é medir o sucesso de um filme pelo tempo que duram os aplausos ao final das premières mundiais para convidados.

Tal termômetro válido da recepção de um longa quanto falho para se prever prêmios, os aplausos podem enganar, pois nem sempre júri e público concordam (ainda mais quando este público é formado de profissionais do cinema que vão aos festivais), mas valem mesmo quando é o público "comum", feito de espectadores que amam o cinema e fazem questão de prestigiar os cineastas menos famosos. Quando a imprensa, então, em geral sóbria, aplaude com empolgação (é raro, mas acontece) um filme, é bom sinal.

Equipe de "Sem Coração", único longa brasileiro em competição no Festival de Veneza 2023, debate o filme após sua estreia mundial
Equipe de "Sem Coração", único longa brasileiro em competição no Festival de Veneza 2023, debate o filme após sua estreia mundial Imagem: Flavia Guerra / UOL

Este foi o caso do brasileiro "Sem Coração" no Festival de Veneza 2023. Na sessão para a imprensa, um dia antes da estreia oficial mundial, houve aplausos carinhosos. Na première oficial, um dia depois, aplausos longos, sinceros e também carinhosos. "Obrigada por este filme maravilhoso e extraordinário. Eu sou de uma cidade pequena. Então, eu entendi muita coisa que acontece", disse um espectador europeu encantado com o primeiro longa da dupla Tião e Nara Normande.

Diante de uma plateia interessada e que, apesar de tantas diferenças, conectou-se com a história da turma de adolescentes de Guaxuma, praia e bairro do litoral de Alagoas, a dez quilômetros da capital Maceió, onde se passa a história, a equipe de "Sem Coração" celebrou e conversou sobre o filme. Único longa brasileiro em competição em Veneza 2023, "Sem Coração" integra a mostra competitiva da seção Orizzonti, dedicada a trabalhos de cineastas jovens, com propostas narrativas não convencionais e que trazem o presente e um olhar para o futuro do cinema.

Equipe do filme "Sem Coração", único longa brasileiro em competição no Festival de Veneza 2023
Equipe do filme "Sem Coração", único longa brasileiro em competição no Festival de Veneza 2023 Imagem: Divulgação

"Sem Coração" é protagonizado pelas jovens Tamara (Maya de Vicq, em sua estreia no cinema) e Duda, ou "Sem Coração", interpretada por Eduarda Samara, mas pode se dizer que é um filme de turma, na melhor acepção da palavra. Em 1996 (guarde esta data, pois é a do ano em que PC Farias foi assassinado justamente em Guaxuma), Tamara tem uma verdadeira gangue de amigos da praia, tão atrevida quanto encantadora. De diferentes realidades, eles encontram nas areias e nas águas do mar o ponto comum que os une e iguala. Comum também é o hábito de invadir a casa luxuosa do vizinho rico, que está sempre vazia (deduz-se que eles só passam os fins-de-semana lá) para ver TV e filmes "proibidos para menores", fazer bagunça e se divertir. Nada de vandalismo, apenas uma travessura um pouco mais ousada.

Entende-se naturalmente que Tamara e seu irmão Vitinho são de uma família mais estruturada, de classe média, com acesso ao estudo. Ela está em plena crise da adolescência, em que se descobre o mundo e os desejos, que, muitas vezes, se impõem sem qualquer cerimônia. Ela vai partir em breve para estudar em Brasília e o verão que passa com os amigos é o último ano de sua vida como ela sempre foi. Tudo vai mudar e isso já é, ainda que tratado com muita naturalidade, um drama e tanto.

Em "Sem Coração", a passagem para a vida adulta e uma jovem que vive no literal alagoano
Em "Sem Coração", a passagem para a vida adulta e uma jovem que vive no literal alagoano Imagem: Divulgação
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A trupe é formada pelo apaixonante Galego (Alaylson Emanuel), que acaba de voltar da Febem, Cidão (Lucas Da Silva), muito mais jovem e o mascote da turma, Binho (Kaique Brito), um jovem gay que encara a homofobia da época, Vânia (Elany Santos) e Eules (Eules Assis). Tamara e o irmão têm realidades diferentes dos amigos, de famílias humildes, e as dinâmicas sociais brasileiras, ainda que sutilmente, permeiam toda a trama.

É principalmente na praia, e em meio à natureza, que os amigos são iguais e compartilham os mesmos receios, alegrias, angústias, descobertas? Eles circulam pelas praias, sobem em coqueiros, comem ouriço-do-mar, nadam, pescam, brincam num hotel e em uma piscina abandonados, vivem os tempos mortos em que nada, e tudo, acontece.

Quem está sempre passando pela turma, mas nunca se aproximando demais, é "Sem Coração" (Eduarda Samara), que protagonizou o curta "Sem Coração" em 2014, premiado no Festival de Cannes, e que deu origem ao longa. A presença dela, que faz entregas para o pai, pescador da região, nas casas locais, atrai e intriga Tamara, que não entende o que sente, mas não nega sua curiosidade por "Sem Coração".

Em "Sem Coração", a passagem para a vida adulta de uma turma de amigos na praia de Guaxuma, em Maceió
Em "Sem Coração", a passagem para a vida adulta de uma turma de amigos na praia de Guaxuma, em Maceió Imagem: Divulgação

"Eu também passei minha adolescência em uma transição muito especial, do curta para o longa. Eu tenho muito da Sem Coração em mim porque meu pai era pescador e a gente viveu da pesca por um tempo. Toda esta dificuldade e aproximação que ela tem com o pai, eu também tive com o meu, passei por este processo", contou Dua ao UOL Splash.

"A Duda fez a Sem Coração no curta e já foi para Cannes. É parecido com o que sinto agora, pois meu primeiro filme e eu já estou em Veneza, que é uma experiência incrível. A Nara também nasceu e cresceu na Guazuma. A minha personagem, a Tamara, também passou sua infância lá. Eu morei por sete anos na Guaxuma e passei muito tempo da minha infância lá. O filme tem muito da gente e de nossas histórias", comentou Maya.

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A transição para a vida adulta e as primeiras grandes descobertas que as jovens atrizes passam são justamente o ponto de contato que faz de "Sem Coração" um filme extremamente brasileiro, com direção que constrói e valoriza a atmosfera, o contexto, que chega em detalhes que revelam a dinâmica histórica e social do Brasil, a paisagem e a relação com a natureza local e a forma como ela molda o ritmo de vida e até o caráter das pessoas.

No entanto, é universal, como disse o espectador, ao tratar dos desafios, medos, traumas, questões de família, medo do futuro, primeiros amores e experiências sexuais, e a tomada de consciência das dinâmicas que movem o mundo. "Adolescência é uma fase muito louca da vida. Vem a mudança do corpo, dos sentimentos, de tudo", comenta Nara. "Ela também está prestes a deixar o lugar em que nasceu e cresceu. Então passa a observar tudo com novos olhos", completa Tião.

A direção de Tião e Nara é precisa, simples na medida em que a escolha dos planos, tempos, fotografia, ritmo, entre outros, servem para contar uma história que parece suave como a brisa da praia, mas que levanta uma areia constante, mudando tudo de lugar. Há um caos calmo no universo de Guaxuma, há uma ebulição lenta, mas certeira na vida dos jovens. Há um olhar e uma intuição muito atenta de Tamara sobre o mundo e sobre a nova amiga Sem Coração.

"Sem Coração", o filme, toma seu tempo para nos contar uma história que nos transporta para um universo particular, mas universal. "É um sentimento assustador que aflora. A gente tem receio pelo que sente, pois cresce com o sentimento do que se diz que é certo. A Tamara, em algum momento, senta, deita no colo da mãe e se questiona sobre o porquê de ter medo. É muito único o que ela sente", analisa Duda. Em linhas gerais, na cena citada, uma das mais intimistas e cálidas do filme, Tamara pergunta para a mãe (Maeve Jinkings, que também preparou o elenco) se é normal ter medo do que se quer.

É o medo do que se quer, do que se deseja e do que virá que assusta, mas também instiga. Os medos e desejos chegam como a maré, que vai e vem sem fazer alarde, mas que mudam tudo. Filme de atmosfera, "Sem Coração" traz a influência de cineastas como Lucrécia Martel, que também conta muito sem grandes alardes.

E assim também é a estreia de Tião e Nara Normande nos longas, que chega de mansinho, mas vem para ficar, revelando a força de um cinema brasileiro diverso e com novas propostas. "A gente tentou trazer a natureza no filme como uma outra personagem, que ajuda a conduzir as emoções dos personagens. Pensamos muito em como equilibrar a natureza com o fluir que a gente quer que as pessoas sintam no filme", explicou Nara. "Ao mesmo tempo, tem coisas que são fortes e que, se a gente não anuncia muito, que chegam naturalmente, te pegam mais forte", completou Tião.

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Coprodução entre Brasil, Itália e França, é produzido por Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho (Cinemascópio), Justin Pechberty, Damien Megherbi (Les Valseurs), Nadia Trevisan e Alberto Fasulo (Nefertiti Film), e coproduzido e distribuído pela Vitrine Filmes. No Brasil, faz sua première no Festival do Rio, no início de outubro.

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