Flavia Guerra

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Reportagem

Amber Heard está de volta e encara obscurantismo no thriller 'In the Fire'

Uma médica norte-americana é contratada para tratar um menino atormentado que vive em uma fazenda na Colômbia no final do século 19. Quando chega, depois de semanas de viagem, descobre que a mãe do garoto morreu acidentalmente e que ele, por ser diferente, é acusado de ser a encarnação do mal e ter culpa não só pela morte da mãe como por outras tragédias na região. Contra o senso comum e a ignorância, ela enfrenta a opinião pública local e defende não só suas convicções como a ciência, sofre várias ameaças, risco de linchamento, moral e físico, e é julgada sumariamente em praça pública.

Assim é a doutora Grace Burnham, alienista (ou psiquiatra), vivida por Amber Heard no thriller "In the Fire", o primeiro filme da atriz que estreia mundialmente após o fim da conturbada disputa legal entre ela e o ex-marido Johnny Depp, que atingiu o auge em meados de 2022. Dirigido por Conor Allyn, longa faz sua première brasileira neste domingo no Festival do Rio e tem sessões na terça 10 e no sábado 14.

O filme fez sua estreia mundial no Festival de Taormina, na Itália, chega aos cinemas dos Estados Unidos na próxima sexta (13), mas ainda não tem data de estreia em circuito no Brasil. O diretor Conor Allyn, em conversa exclusiva com Splash, informou que já tem distribuição no País e deve chegar em breve às salas e/ou ao streaming.

"Não vou poder ir ao festival por questão de compromissos, mas estou muito feliz de exibir o filme no Rio, uma cidade que conheço e amo", declarou o cineasta, que já assinou filmes como o western "No Man's Land" (2021).

Trailer de In The Fire

Chega a ser irônico que a personagem tenha, ainda que se trate de um filme de época e um tema aparentemente tão diferente de sua vida real, tantos pontos de contato com o julgamento e o linchamento moral e da opinião pública mundial que a atriz sofreu principalmente em 2022, quando Amber e Johny Depp se enfrentaram na justiça em um processo de difamação movido por ele contra ela.

"O filme é uma meditação sobre o poder quase sobrenatural do amor, contado por meio de uma mulher obstinada e independente na virada do século 20. Sinto-me honrada por fazer parte deste trabalho de amor e por ser a líder na visão de Conor Allyn (diretor)", declarou Amber em comunicado oficial, elaborado antes da greve dos atores de Hollywood.

Amber Heard e Luca Calvani em cena de "In the Fire"
Amber Heard e Luca Calvani em cena de "In the Fire" Imagem: Divulgação

"E não acho que é uma coincidência que ela se conectou com a história. Em sua vida real, ela tem dito a verdade, que se manteve firme e fiel às suas convicções, que falou a verdade mesmo quando as massas não acreditaram nela, não concordaram com ela, quanto tentaram derrubá-la. Ela apenas disse: 'Esta é minha verdade.' Ela pagou um preço horrível por isso, mas é também um dos motivos pelos quais eu acho que ela se conectou com esta personagem", contou o diretor Conor Allyn quando questionado por Splash sobre os pontos de contato entre a história da personagem e da atriz, que enfrentou não somente o tribunal real, mas, principalmente, os tribunais das redes sociais e da mídia nos últimos anos.

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"Grace também é alguém que é assim. No filme, ela é arrastada e surrada em praça pública. Então há muitos paralelos entre a vida de Amber e o que esta personagem passa. Tenho certeza que ela trouxe muitas experiências pessoais quando estava filmando esta história", completou o diretor, que filmou "In the Fire" entre fevereiro e março de 2022.

Amber Heard em cena de "In The Fire", thriller de época em que vive uma médica que tenta tratar um garoto acusado de estar possuído
Amber Heard em cena de "In The Fire", thriller de época em que vive uma médica que tenta tratar um garoto acusado de estar possuído Imagem: Divulgação

Amber leu o roteiro do longa no início de 2021 e rodou o filme no início de 2022, pouco antes da última polêmica com Depp realmente pegar fogo com o desfecho do julgamento de difamação. Até mesmo o nome "In the Fire" (em tradução livre, pegando fogo ou na fogueira) ressoa ao se pensar no drama em que a vida da atriz se tornou desde 2016, com o início do processo de divórcio de Johnny Depp, em maio daquele ano, que ela iniciou dias depois de uma grande discussão, afirmando que ele a teria agredido verbal e fisicamente no episódio.

"Por muitas razões, sinto que ela é este personagem. Grace é uma mulher que está tentando se provar. Ela tem todas as qualidades, tem toda essa inteligência. Mas ainda precisa disso por causa da sociedade. Ela precisa de uma chance de provar seu talento. E aqui está ela nos rincões do mundo com este menino que precisa dela. E esta é a chance dela não provar só para o pai do menino que ele está errado, mas também para ela de que ela é capaz. E essa era a Amber", comentou Conor.

O italiano Lorenzo McGovern Zainin vive o garoto Martin Marquez em "In the Fire"
O italiano Lorenzo McGovern Zainin vive o garoto Martin Marquez em "In the Fire" Imagem: Divulgação

Grace precisa, na verdade, provar que Martin possui uma condição ou transtorno (psiquiátrico ou neurológico) e que pode ser tratado, em vez de exorcizado ou assassinado. Diante de uma sociedade com pouca cultura, muita crença em dogmas religiosos e com medo, a cada fato ou tragédia, a crença que o garoto é o mal só aumenta.

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No entanto, quando afirma que Amber, assim como a personagem, precisa se provar, o cineasta não fala só das polêmicas, mas também de seu talento e do fato que pode ser muito mais que a "garota bonita da história".

Amber já atuou em filmes interessantes como "Aterrizada" (2011), dirigido pelo genial Jonh Carpenter, "A Garota Dinamarquesa" (2016), "Diário de um Jornalista Bêbado"( 2012, em que ela conheceu Depp) e até o irregular "London Fields" (2018), em que também ao lado de Depp em certa parte da trama. Mesmo assim, ganhou fama mundial ao viver a princesa Mera de "Aquaman" (no 1 e no 2, cuja data de estreia ainda está indefinida) e, polêmicas à parte, marcada por ser a "garota bonita" das histórias.

Conor Allyn dirige Amber Heard e o garoto Lorenzo Zainin no set de "In the Fire"
Conor Allyn dirige Amber Heard e o garoto Lorenzo Zainin no set de "In the Fire" Imagem: Divulgação

"Isso não ocorre só com a Amber. Quando se é uma jovem atriz, rapidamente se é taxada de "esta é a garota sexy", a "garota que está em apuros", "o interesse romântico do protagonista", "a garota que o cara está tentando conquistar"... e se é rotulada assim muito rapidamente", observou Conor. "Quando eu conheci a Amber, eu entendi muito rapidamente que ela, claro, é jovem e linda, mas há muitas outras razões pelas quais ela é uma estrela. Ela é uma grande atriz, ela é realmente inteligente, ela pode ser muito forte, ela tem nuances, ela lé muito, ela fala espanhol, todas estas coisas que as pessoas não sabem sobre ela. E por todas estas razões eu senti que ela era a própria personagem da Grace", observou o cineasta.

Ultrapassar esta barreira e este rótulo, principalmente após tantas polêmicas e tantos julgamentos, não é tarefa nada fácil. "In the Fire", ainda que não seja um longa perfeito, traz uma abordagem inteligente. Aparentemente, é um filme de época que conta uma história sobre os perigos da ignorância e do fanatismo diante do que não conhecemos e, portanto, tememos.

No entanto, a abordagem tanto do roteiro quanto da direção tratam de temas muito contemporâneos. Afinal, vivemos a era do retrocesso, em que, em um mundo durante e pós-pandêmico, vimos o fanatismo, a falta de confiança na ciência, na medicina e no diálogo tomarem os corações e mentes. Uma jovem médica tentando tratar com os recursos e preceitos da psiquiatria um garoto que sofre de um transtorno desconhecido diante de uma população que prefere taxá-lo de "força do mal" e rotulá-la como bruxa é uma ótima alegoria do mundo contemporâneo.

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O garoto Lorenzo Zainin e Amber Heard em cena de "In the Fire"
O garoto Lorenzo Zainin e Amber Heard em cena de "In the Fire" Imagem: Divulgação

"Há 200 anos, quando as pessoas cometiam alguma contravenção ou crime, era comum por as pessoas em praça pública para que elas se envergonhassem. Elas caminhavam pela praça e subiam em um palco e ficavam ali por alguns dias para que fossem expostas. Mas isso foi abolido no mundo todo porque era cruel demais. As pessoas iam para a prisão ou pagavam suas penas, em silêncio", explicou o diretor.

"E hoje a gente basicamente reinstitui isso, mas sem pessoas qualificadas para julgar. A gente simplesmente faz isso online e decide que as pessoas devem ser punidas. A gente faz nas redes sociais. A gente bota a foto da pessoa e diz: 'você devia ser cancelado, você devia se envergonhar'.

Em "In the Fire", o julgamento é real e também rápido, mas a doutora Grace resiste e não cede diante da pressão. "Grace não é religiosa, mas ela tem fé na ciência. Ela, ao mesmo tempo, se questiona ao longo da história. A gente não vai tão longe, mas as mulheres ainda são minoria na ciência. Psicologia e a saúde mental ainda é subestimada comparadas com outros temas. Eu sei, por experiência na minha família, que se um parente tem câncer, a questão é tratada de uma forma. Mas se tem um surto psicológico, é um trauma assustador e silencioso sobre o qual ninguém sabe como conversar. A resposta é meio: "por que você não volta a agir normalmente", comenta o cineasta.

"A gente tem medo do desconhecido , mas a gente tenta criar explicações que nos fazem acreditar que entendemos. E é definitivamente o que acontece neste filme, quando as pessoas desta comunidade remota se depara com as coisas que acontecem e com este menino. Elas querem culpar algo e alguém porque têm medo", comenta Conor.

Filmado na região da Puglia na Itália e na Guatemala, "In The Fire" é um projeto de baixo orçamento, para os padrões de Hollywood, e faz bom uso dos recursos para contar uma história que também traz outros bons atores em cena.

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"Sinto que tenho sorte por estar cercada de um elenco tão incrível. Eles são tão dedicados e mágicos como os personagens que interpretam", declarou Amber, que atualmente vive na Espanha, onde cria a filha Oonagh Paige Heard, que nasceu em abril de 2021 por meio de uma barriga de aluguel.

O italiano Lorenzo McGovern Zainin vive o garoto Martin Marquez, o espanhol Eduardo Noriega vive Nicolas Marquez, seu desconfiado, mas amoroso pai, e o italiano Luca Calvani é padre Antonio que cuida de Lorenzo e acredita que Grace (Amber) pode ser um instrumento de Deus para curar o garoto. Já Padre Gavira (Yari Gugliucci), que comanda a paróquia local, acredita que é preciso realizar um exorcismo em Lorenzo. Ele é a representação, e o líder, de uma sociedade que se apega nos dogmas e fanatismo religioso para tentar explicar ou se proteger do que não se conhece.

"Mesmo que o filme tenha um comentário social, é também um thriller. Mas os riscos são altos na história. Há esse garoto de 11 anos que as pessoas querem matar. Quando Grace se posiciona ao seu lado, ela se torna um alvo. Mas há um outro padre ( Antonio) que tem uma visão mais moderada da religião, que não acha que se deve exorcizar o garoto. Este padre, que está no meio de tudo isso, encontra no "lado errado" por conta de sua visão moderada. No mundo contemporâneo, ninguém pode também. A gente só fala em termos absolutos. Não há meio termo. Ou você está comigo ou está contra mim. Se você está no meio, significa que você está contra. Você está errado", analisa Conor.

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