Conteúdo publicado há 8 meses
Flavia Guerra

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Reportagem

'O Barulho da Noite' leva o difícil tema da violência infantil à Mostra SP

"O Barulho da Noite", dirigido por Eva Pereira, tem sessão neste domingo (29) na Mostra de Cinema de São Paulo, no Espaço Itaú Frei Caneca, e conta uma história que, como afirma a atriz Emanuelle Araújo, muitas vezes é invisível, mas que merece e precisa ser contada cada vez mais: a da violência doméstica e da violência infantil.

Ainda que o filme seja uma produção do Tocantins e trate da realidade de três mulheres, a mãe (Emanuelle Araújo) e as duas filhas pequenas que vivem em um rincão do Brasil, as histórias de violência doméstica se repetem todos os dias, seja no campo ou nas grandes cidades, em famílias humildes ou ricas.

No caso de "O Barulho da Noite", primeiro longa da tocantinense Eva Pereira, o ambiente rural, ermo, em que qualquer barulho pode ser ouvido a metros de distância, é crucial para se criar também a atmosfera de medo e terror diante dos barulhos que não se podem nomear e os silêncios ensurdecedores.

O Barulho da Noite - Trailer

"Uma história que é a realidade de muitas pessoas. A gente vive em um país muito grande. A gente tem realidades distintas e muitas vezes isso que, dentro da região que a gente fala (no filme, o interior do Tocantins), é comum. Essa realidade dura da violência contra a mulher dessa região e da forma como a Eva (Pereira, diretora) conta é comum. Para pessoas de outras regiões pode ser impactante, violenta, pode ser, inclusive, incômoda", declarou a atriz Emanuelle Araújo a Splash.

E para mim, o maior orgulho de viver essa experiência com Eva, de contar essa história, de ela me dar a oportunidade de viver essa mulher tão diferente de mim e tão diferente da minha realidade, é ter a oportunidade de dar visibilidade a essas mulheres. Emanuelle Araújo a Splash

Sônia (Emanuelle Araújo), dividida entre a vida autera que leva com o marido (Marcos Palmeira) e o encantamento com um forasteiro sedutor e misterioso
Sônia (Emanuelle Araújo), dividida entre a vida autera que leva com o marido (Marcos Palmeira) e o encantamento com um forasteiro sedutor e misterioso Imagem: Divulgação

Tratando mais especificamente da trama também escrita por Eva, "O Barulho da Noite" conta a história de Sônia (Emanuelle) e suas duas filhas, Maria Luíza (Alícia Santana) e Ritinha (Anna Alice Dias).

Elas têm uma vida humilde e austera, mas relativamente feliz ao lado de Agenor (Marcos Palmeira), um agricultor que trabalha duro, é pai atencioso e presente, ainda que um tanto desatento aos desejos e frustrações de sua mulher.

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Folião do Divino Espírito Santo, todo ano ele deixa a família no sertão durante os 40 dias em que viaja para participar da festa religiosa para desagrado de Sônia, que sente medo de ficar sozinha por tanto tempo. Certo dia, ele anuncia que seu sobrinho, que vive longe e sobre quem não se sabe praticamente nada, vai passar a viver com a família, ajudá-lo na roça e que ela não precisará mais sentir medo quando ele viajar, pois o rapaz vai ficar e tomar conta delas.

Só que o misterioso sobrinho, Athayde (Patrick Sampaio), chega e traz o caos, seduz Sônia e muda para sempre a vida da família. É pelos olhos atentos e vivazes da pequena Maria Luíza, de apenas sete anos, que o espectador vê e entende que não só a paz delas termina com a chegada do enigmático e violento homem, mas também a infância das meninas.

A família de Sônia (Emanuelle Araújo) e Agenor (Marcos Palmeira) vive em meio à beleza e a brutalidade de um Brasil profundo
A família de Sônia (Emanuelle Araújo) e Agenor (Marcos Palmeira) vive em meio à beleza e a brutalidade de um Brasil profundo Imagem: Divulgação

Sem revelar muito da trama, que merece ser descoberta em detalhes pelo espectador, Athayde assume o papel que era de Agenor e vai se revelando aos poucos autoritário, violento e abusivo. Sônia, que se atraiu pela atenção, pelo desejo de ser também desejada, vista, amada, acaba tragicamente punida por ousar viver a paixão e supostamente ser negligente ou ingênua.

Seu destino funciona como uma alegoria sobre a punição e a culpa que historicamente (e até mitologicamente) a mulher sofre ao se deixar guiar pelo impulso de querer mais que um bom casamento, um bom marido, de ousar desejar e ser desejada.

Quando a violência que ela começa a encarar se estende para as filhas, a paralisia e o silêncio que toma conta dela pode soar como negligência maior ainda, ou até mesmo conivência, mas é um mix de medo, paralisia, pavor e passividade que remete a violências que ela também sofreu na infância e dinâmicas que se repetem.

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Quebrar o ciclo de violência do filme exige soluções drásticas, para não dizer trágicas. "O Barulho da Noite" é incômodo, não é feito para "se gostar", mas sim para justamente fazer mais barulho ainda é romper a conivência cômoda de uma sociedade que se estruturou no sufocamento da voz das vítimas.

Assistir, debater o tema, falar, trocar, dialogar e, mais que tudo, romper o pacto de silêncio que protege abusadores e violenta mais ainda as vítimas, faz parte de um processo de quebra do ciclo de violência da vida real, da sociedade brasileira.

A cineasta Eva Pereira que assina a direção do longa tocantinense "O Barulho da Noite"
A cineasta Eva Pereira que assina a direção do longa tocantinense "O Barulho da Noite" Imagem: Divulgação

"Esta foi uma história que me incomodou por 20 anos. Eu não sabia o que fazer com ela. Eu comecei uma investigação sem saber o que seria essa história, que me trouxe para o audiovisual. Foi o que me fez ir de estagiária a diretora para contar esta história", contou a diretora Eva Pereira a Splash.

"Fui me deparando com situações para as quais eu não estava pronta. Eu era uma militante acadêmica, no discurso. Mas na vida real, a gente julga, condena, aponta. Eu não estava pronta, era uma bagunça. Quando decidi fazer o filme, era para elaborar essa bagunça. Eu estava cheia de julgamentos, de condenações. Mas o filme voltou o meu olhar para mim e para o meu entorno. E eu vi que aquilo (a violência) estava em todas as partes, mais perto do que eu gostaria. O que tinha como elo era apenas o silêncio. Quando eu rompia o silêncio, eu não conseguia dormir com o barulho porque aquilo me perseguia. Isso me roubou de mim, mas me deixou pronta e me curou", relatou a cineasta.

Esta história que perturbou Eva por 20 anos e que nas telas começou sua carreira em agosto, no Festival de Gramado, chega agora ao público de São Paulo e, em breve, com a estreia do filme em circuito comercial, vai chegar às telas do País todo e certamente ainda vai render muitas sessões incômodas e debates mais incômodos ainda, mas extremamente necessários.

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Confira acima a entrevista com Emanuelle Araújo e Eva Pereira.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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