Flavia Guerra

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Reportagem

'É o momento perfeito': filme sobre morte de Yitzhak Rabin chega ao Brasil

"Infelizmente, é o momento perfeito. Digo infelizmente porque é tão trágico. Mas temos que manter a ideia de que ainda temos que lutar por uma solução. De outra forma, qual é a alternativa? É só pessimismo, destruição, morte, niilismo. Então temos que, no fim do horizonte, manter um pouco de esperança e trabalhar para isso. Não vai acontecer por si só."

Assim o cineasta israelense Amos Gitai respondeu a Splash, em conversa por Zoom, sobre o momento em que "O Último Dia de Yitzhak Rabin" (Rabin, The Last Day) estreia no Brasil, oito anos depois do lançamento internacional do filme que retrata os últimos momentos da vida do primeiro-ministro de Israel, assassinado em 4 de novembro de 1995, quando fazia um discurso em uma manifestação pela paz entre Israel e Palestina para cerca de 100 mil pessoas, no centro de Tel Aviv.

Alguns minutos depois do discurso histórico, o premier levou três tiros nas costas, disparados pelo jovem estudante Yigal Amir, que militava em um grupo de extrema-direita e via em Rabin um inimigo de Israel. O atentado não só simbolizou o fim de uma utopia como também revelou o quão grave era a situação de violência entre as próprias comunidades religiosas israelenses e o radicalismo político no país.

TRailer de Yitzhak Rabin

Justamente 28 anos depois, a paz nunca pareceu tão distante e, como afirma Gitai, será preciso muito trabalho para que seja conquistada. Sua parte, como cineasta que sempre teve uma visão crítica sobre as questões que permeiam a utopia e a formação do estado de Israel ("Kedma" e "Éden"), a relação com palestinos ("Uma Noite em Haifa", "Diário de Campanha" e "Casa", em exibição na bienal de São Paulo), os conflitos ("Dia do Perdão", entre outros) e a complexidade da própria sociedade judaica e israelense ("Kadosh - Laços Sagrados, entre outros"), Gitai segue fazendo.

O tema que seguia sempre atual entrou em combustão no último mês após o ataque do extremista Hamas a Israel e a consequente duríssima resposta do país com os bombardeios à Faixa de Gaza. Na mesma semana em que lança o filme no Brasil, abre em Madrid uma exposição na Biblioteca Nacional. Esta mostra é uma extensão do grande projeto que é a investigação das condições sociais, políticas e religiosas que levaram ao assassinato de Rabin.

"Este foi um dos grandes projetos que fizemos. Ainda o considero muito importante", comentou Amos. No início de outubro, o cineasta estava em Viena para a apresentação da peça "House" ("Casa"), que integra um projeto mais amplo que o cineasta desenvolve desde os anos 1980 sobre uma mesma casa em Jerusalém.

O cineasta Amos Gitai durante as filmagens de "O Último dia de Yitzhak Rabin"
O cineasta Amos Gitai durante as filmagens de "O Último dia de Yitzhak Rabin" Imagem: Divulgação

Se a saída e o fim do atual caos estão, por ora, longe de serem alcançados, o fim de uma era em que se acreditava que a paz seria finalmente possível é esmiuçado com apuro, tempo e detalhes em "O Último Dia de Yitzhak Rabin". Gitai começa o filme de mais de duas horas e meia com uma entrevista com Shimon Peres, então Ministro das Relações Exteriores de Rabin, em que ele fala do ódio que o premier israelense enfrentava, principalmente da ala radical e de direita, que o comparava aos nazistas e desejava "que todas as maldições caiam sobre ele".

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No documentário "O Último Dia de Yitzhak Rabin", o cineasta Amos Gitai reconstitui cenas do atentado que matou o primeiro ministro israelense em 1995
No documentário "O Último Dia de Yitzhak Rabin", o cineasta Amos Gitai reconstitui cenas do atentado que matou o primeiro ministro israelense em 1995 Imagem: Divulgação

A tudo isso, somam-se cenas documentais, como a de um ainda jovem Benjamin Netanyahu (na faixa dos 40 anos) bradando em um protesto contra a negociação de paz de Rabin com os palestinos. Para ele, a verdadeira e duradoura paz era a que ele e seus aliados políticos lutavam, a da "expansão dos assentamentos judaicos, a imigração judaica sionista, para que não estivesse de volta a lei palestina".
Rabin seria assassinado pouco tempo depois deste protesto que pedia sua morte e Netanyahu foi eleito primeiro-ministro de Israel em 1996, um ano após o assassinato de Rabin, cargo que ocupou até 1999. Netanyahu voltaria ao poder em 2009, ficando no cargo até 2021. E, por último, ocupa o cargo atualmente.

Cena de "O Último dia de Yitzhak Rabin", do cineasta israelense Amos Gitai
Cena de "O Último dia de Yitzhak Rabin", do cineasta israelense Amos Gitai Imagem: Divulgação

Hoje, quase três décadas depois, a imagem de Netanyahu só não soa como maior ironia porque o processo histórico se impõe diante do espectador. "Ele construiu esse governo maluco com ultranacionalistas e lunáticos messiânicos e ultra-religiosos. Começou, para não ir a julgamento, a dividir a sociedade, a incitar os judeus contra os árabes. Judeus sefaraditas contra judeus ashkenazi, religioso contra secular", declarou Gitai.

E é justamente este processo complexo que Gitai vem tentando entender, retratar e documentar, seja por documentários, ficções, peças, exposições. Impossível não se perguntar o que teria sido das relações entre Israel e Palestina,e do próprio Oriente Médio e do mundo, se a negociação de paz entre Rabin e o líder palestino Yasser Arafat tivessem se concretizado após a assinatura dos Acordos de Oslo em setembro de 1993.

No documentário "O Último Dia de Yitzhak Rabin", o cineasta Amos Gitai reconstitui cenas do processo que investigou as falhas de segurança que permitiram o assassinato do primeiro ministro israelense em 1995
No documentário "O Último Dia de Yitzhak Rabin", o cineasta Amos Gitai reconstitui cenas do processo que investigou as falhas de segurança que permitiram o assassinato do primeiro ministro israelense em 1995 Imagem: Divulgação
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Arafat, Rabin e Shimon Peres (ministro das relações exteriores de Israel) levaram o Nobel da Paz em 1994. O mundo caminhava para ver a paz finalmente se estabelecer na região e, da parte israelense, Rabin se firmava para o mundo como um líder que conquistaria um feito sem precedentes. O premier sempre afirmou que não há paz sem que o outro lado seja reconhecido. Esta afirmação era uma peça tão chave para a paz quanto incômoda para os que o criticavam, principalmente os grupos de direita e extremistas.

"No filme, eu gosto muito desta parte em que, na conferência de imprensa no Cairo, ele fala realmente sobre Gaza. Então ele diz sobre Gaza que ele é contra a retirada unilateral", comentou o cineasta.

"Ele diz que 'se sairmos, temos de garantir que os 25 mil funcionários palestinos recebam salários, eles precisam de água, precisam de eletricidade, ele até diz que precisam de ter oxigênio no hospital. Então, é assim. Fazer a paz é como uma relação íntima. O outro deve existir. Não é unilateral", completou ele, que também sempre foi um observador atento e não maniqueísta da realidade complexa da região.

Para quem descobre agora o cinema de Gitai, vale lembrar que a distribuidora Synapse deve relançar diversos outros títulos seus no Brasil e, assim, será possível ter uma visão mais ampla deste grande cineasta.

Mas começar por "O Último Dia de Yitzhak Rabin" é, como já dito, muito oportuno. Na atual conjuntura, é também, no mínimo, melancólico assistir ao documentário. No entanto, é necessário abrir, como afirma Gitai, os arquivos da História para se tentar ao menos entender os caminhos que conduziram o mundo ao atual conflito. "Acho que é o que nós, cineastas, podemos fazer, que é criar o arquivo da memória. E às vezes, como você disse, a memória volta. E a gente vê algumas coisas que fizemos anos atrás?", afirma o diretor.

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