Flavia Guerra

Flavia Guerra

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Mais que de humor e chanchada, 'Ó Paí, Ó 2' é feito de resistência

"Quero morar neste Brasil". Esta era uma das frases mais ouvidas após a estreia de "Ó Paí, Ó 2" para convidados em São Paulo no início desta semana. O clima ao final da sessão que lotou todas as salas do Espaço Itaú de Cinemas Frei Caneca era de celebração, comunhão, alegria por, 15 anos depois, reencontrar os personagens que fizeram do primeiro filme um clássico do cinema brasileiro contemporâneo.

Mas que energia é esta? Que Brasil é este? São muitos. Mas certamente um País diverso, em que os personagens que se apresentam com humor e sagacidade diante dos dramas e tragédias, em seus tipos, mas também suas nuances, suas vulnerabilidades e forças, em arquétipos, mas também em individualidades e, sobretudo, em sua união, o coletivo. O aquilombamento, para usar uma palavra perfeita para a trupe do Pelourinho, é a força que cria a sensação e a vontade de viver em um Brasil em que ninguém solta a mão de ninguém mesmo, em que com ginga e com humor, com ancestralidade e pés bem fincados no presente e de olho no futuro, é que se conquista a real cidadania.

De resistência e de união, "Ó Pai Ó 2" faz rir, mas está com os pés fincados na realidade brasileira
De resistência e de união, "Ó Pai Ó 2" faz rir, mas está com os pés fincados na realidade brasileira Imagem: Divulgação

É este coletivo cheio de humor, deboche, mas também de apoio, solidariedade, até mesmo com os supostos inimigos (vide o coreano que, cheio de sonhos, também emigra para a Bahia disposto a ter uma vida melhor e acaba também vítima da especulação imobiliária), que enche o público de vontade de sair lutando e dançando ao final do filme dirigido por Viviane Ferreira e estrelado por Lázaro Ramos (Roque), Luciana Souza (Dona Joana), Tânia Toko (Neuzão), Dira Paes (Psilene), Valdineia Soriano (Maria) e (Érico Brás), Lyu Arisson (Yolanda) Cássia Vale (Mãe Raimunda), Jorge Washington (Matias), entre tantos outros.

O roteiro assinado por Viviane Ferreira, Daniel Arcades, Elísio Lopes Jr. e Igor Verde, com contribuição de Rafael Primot e Luciana Souza, traz, parafraseando os próprios autores, um metatarso preto, uma trama afrocentrado e afrorreferenciado, em que ícones da cultura, como grandes nomes da cultura baiana, como o próprio Olodum e a da Cultura Margareth Menezes, entre outros, são devidamente homenageados.

"Ó Paí, Ó 2" é uma chanchada, um ato de celebração, um teatro de revista, um musical, em diálogo aberto com as grandes comédias clássicas do cinema brasileiro. A espinha dorsal da história, no entanto, está na força de seus personagens adoráveis e memoráveis e na união, no aquilombamento dentro e fora da tela. Majoritariamente negro em sua trama e elenco, maioritariamente negro em sua equipe, a força de "Ó Paí, Ó 2" também está em dialogar com seu público alvo, ávido por ver suas histórias na tela, e em escancarar este cinema brasileiro com potencial de grande público para espectadores que até hoje, desatentos ou acomodados em seu lugar de conforto e privilégio, não perceberam a força de se ter mais cineastas como Viviane Ferreira assinando filmes que miram o diálogo com o grande público.

Debora Marçal e Léa Garcia em cena de "Um dia com Jerusa", de Vviane Ferreira
Debora Marçal e Léa Garcia em cena de "Um dia com Jerusa", de Vviane Ferreira Imagem: Divulgação

Viviane Ferreira, aliás, além de atualmente presidir a SP Cine, é a segunda cineasta negra a assinar individualmente a direção de um longa-metragem de ficção no Brasil: "Um Dia Com Jerusa", que estreou em 2021. A primeira foi Adélia Sampaio com "Amor Maldito" em 1984. Com "Ó Paí, Ó 2", Viviane assina seu segundo longa, como um dos tantos fatos que prova que, como diz Roque (o personagem de Lázaro), pode parecer que não, mas muita coisa mudou nestes quinze anos, desde que "Ó Paí, Ó" foi lançado em 2006.

"Hoje é uma alegria imensa reconhecer o quanto " Ó Paí, Ó" abriu caminho para a transformação da nossa sociedade. Agora eu me coloco do lado da produção e entrego a direção para a Viviane", disse a produtora Monique Gardenberg, que assinou a direção de "Ó Paí, Ó". Ninguém imaginava que o primeiro filme desta, tomara, franquia cheia de baianidade, axé e humor fosse se tornar um dos maiores sucessos do cinema brasileiro contemporâneo. A estreia de "Ó Paí, Ó 2" era uma das mais aguardadas deste ano e seu sucesso é prova de que o público brasileiro quer sim se ver na tela grande. Na telinha, aliás, "Ó Paí, Ó" virou em 2008 série, que teve duas temporadas.

Continua após a publicidade
A cineasta Viviane Ferreira, a primeira diretora negra a assinar individualmente a direção de um longa-metragem de ficção no Brasil
A cineasta Viviane Ferreira, a primeira diretora negra a assinar individualmente a direção de um longa-metragem de ficção no Brasil Imagem: Divulgação

Mas, vamos à trama do novo longa. 15 anos depois que a turma de Roque queria curtir o Carnaval da Bahia e a ação girava em torno de suas agruras e o cortiço de dona Joana (Luciana Paz), reencontramos os personagens à voltas com novas questões de um mundo contemporâneo. Roque agora é pai e está prestes a lançar sua nova canção e finalmente fazer sucesso. Neuzão está com muitas dívidas e acabou de perder o bar (o grande ponto de encontro da turma) para a especulação e para um golpe de um corretor picareta.

Quando a trupe descobre a tragédia, inventa uma festa de Yemanjá para levantar verba e recuperar um dos QGs mais importantes do grupo. É em outro ponto de encontro que as discussões, reuniões e boa parte da história acontecem, o cortiço de Dona Joana (Luciana Paz),que agora ganha novos moradores, pois, de luto com a morte dos filhos Cosme e Damião, assassinados pela polícia, ela praticamente adota três jovens em situação de rua e os leva para morar com ela.

Em "Ó Pai Ó 2", Roque (Lázaro Ramos) é pai e está prestes a finalmente fazer sucesso com sua música
Em "Ó Pai Ó 2", Roque (Lázaro Ramos) é pai e está prestes a finalmente fazer sucesso com sua música Imagem: Divulgação

Após a abertura cheia de axé, energia e a força da negritude do Pelourinho, é com Dona Joana em uma sessão de terapia (Luís Miranda, que cada vez mais surpreende com novos papeis) que nos deparamos com a dureza da qual também se faz não só a Bahia, mas o Brasil. Deprimida, mergulhada em um luto profundo, ela está oca e sem rumo, mas se cuida e faz terapia. Nem nos orixás e nem na fé evangélica, que também está presente, ela encontra um novo caminho.

Mas, já que estamos em uma chanchada, em meio aos dramas, há espaço leveza, humor, romance, musical e poesia, que chega no slam na boca da nova geração, conectada e equipada para lutar com as armas das redes sociais e tecnologia por um país melhor e mais justo e menos racista.

Continua após a publicidade
Fruto da coletividade, dentro e fora da tela, "Ó Pai Ó 2" é o metaverso da cultura negra brasileira em sua essência e potência
Fruto da coletividade, dentro e fora da tela, "Ó Pai Ó 2" é o metaverso da cultura negra brasileira em sua essência e potência Imagem: Divulgação

É tudo e todos. É levar com esta leveza, mas sem negar os dramas e as diversidades de ser e existir, que é a essência de "Ó Paí, Ó 2". O que nasceu no primeiro longa adaptado da obra do Bando de Teatro Olodum se atualiza, ganha mais força e traz ventos de um Brasil que é muito baiano, mas também muito universal. Em uma fábula que também tem muito do real, pois é (sempre foi) por meio do aquilombamento, da união, da resistência sem jamais perder a força e a alegria desafiadora do status quo, que a população negra brasileira vem mudando um país estruturalmente desigual, racista e classista. É para ver dançando, cantando, celebrando, mas sem esquecer que mais histórias assim devem e serão contadas.

Destaque para a direção de arte de Raquel Rocha, direção de fotografia de Lîlis Soares e o figurino assinado por Lena Santanna, ajudam a construir o universo realista e, ao mesmo tempo, lúdico de "Ó Paí, Ó 2". Mais uma prova de que, a coletividade, dentro e fora da tela, fazem a força deste que tem tudo para ganhar seu terceiro filme e se tornar uma bela franquia afrofuturista brasileira.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes