Flavia Guerra

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'A Sociedade da Neve': canibalismo, morte e pacto de ética para sobreviver

A premissa do caso real que inspira o filme "A Sociedade da Neve" é tão surreal e assustadora que seria natural imaginar que o diretor espanhol J. A. Bayona poderia explorar o lado mais sombrio da história que abalou o mundo em 1972.

Afinal, como não cair na tentação de concentrar no impressionante fato de que os sobreviventes do voo 571 da Força Aérea Uruguaia, que voava de Montevidéu, no Uruguai, para Santiago, no Chile, e que caiu nos Andes, tiveram de se alimentar dos corpos dos que morreram na queda e pouco tempo depois dela, para resistir até conseguir resgate?

O voo levava o time de rugby amador uruguaio Old Christians, do colégio Stella Maris, para representar o país em uma competição no Chile e, em meio a um péssimo tempo, o turboélice Fairchild FH-7827 D caiu em meio aos Andes, em um local de dificílimo acesso.

Havia 45 pessoas a bordo, a grande maioria jovens atletas. Destes, parte morreu com o choque e parte pouco tempo depois da queda. Os que sobreviveram também viveram uma das histórias mais famosas e emblemáticas de luta pela vida, que gerou debates em todo o mundo e até hoje é exemplo de superação e organização em condições extremas e desafiantes.

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Foram 72 dias isolados em um deserto branco, a 3.500 metros de altitude, de agonia, frio extremo, desespero, dúvidas éticas, decisões dificílimas até que, finalmente, 2 dos 16 sobreviventes conseguissem encontrar ajuda em um vilarejo a oito quilômetros do local do acidente.

Detalhar mais da trama, para os que não a conhecem ainda ou não se lembram dos pormenores, é estragar o prazer de descobrir como Bayona conta uma história cujo traço mais marcante, o do canibalismo, e cujo final (sim, eles sobreviveram), já se sabe.

É exatamente o "como", a abordagem do roteiro e do diretor que faz toda a diferença no filme que chega nesta semana na Netflix, depois de estrear nos cinemas. Representante da Espanha na corrida ao Oscar de melhor filme internacional 2024 e indicado ao Globo de Ouro 2024 na mesma categoria, "A Sociedade da Neve" faz a escolha acertada de não focar no bizarro, nem no tétrico, mas, sim, no pacto de sobrevivência que os passageiros do voo tiveram de fazer.

Cena de "A Sociedade da Neve", de J.A.Bayona, que retrata a luta dos sobreviventes do lendário acidentes nos Andes nos anos 70
Cena de "A Sociedade da Neve", de J.A.Bayona, que retrata a luta dos sobreviventes do lendário acidentes nos Andes nos anos 70 Imagem: Divulgação / Netflix
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Ao longo de suas 2h24min, acompanhamos as escolhas e a decisão ética de não só aceitar, literalmente, sobreviver graças ao que os que pereceram deixaram, seus próprios corpos, mas também de oferecer seus corpos para os demais, caso não resistissem ao frio e às condições inóspitas do local onde se encontravam.

Foi preciso que se formasse a "Sociedade da Neve", com sua ética, lógica, funcionamento e dinâmicas para que a turma resistisse, principalmente depois que, por meio de um rádio improvisado, descobrissem que as buscas por sobreviventes haviam sido encerradas, pois não se acreditava que, dez dias depois do acidente, pudesse haver alguém ainda vivo.

O cineasta espanhol J.A. Bayona com o escritor Pablo Vierci, autor de  'A Sociedade da Neve', no qual o filme homônimo é inspirado
O cineasta espanhol J.A. Bayona com o escritor Pablo Vierci, autor de 'A Sociedade da Neve', no qual o filme homônimo é inspirado Imagem: Divulgação / Netflix

"Uma história tão simbolicamente emblemática e única não pode ser repetida. Portanto, precisava de uma nova interpretação, de uma nova forma de lê-la. E tinha que ser com um diretor como esse. Bayona era a pessoa certa para levar esta história a um novo patamar e a um novo mundo", declarou o escritor Pablo Vierci, autor do livro homônimo no qual o filme é baseado, em entrevista para Splash durante o Festival de Veneza 2023, onde o filme fez sua pré-estreia mundial.

Amigo e colega do colégio Stella Maris dos jovens que viajaram no fatídico voo, Vierci escreveu o livro como uma forma de contar a história por um viés humanista. "Eu os conhecia desde os cinco anos. Imagine se 30 dos seus amigos ou amigos mais próximos desaparecessem em um avião nos Andes. Este livro é uma missão de contar esta história com respeito e ética."

Para Bayona, famoso por outro "filme de sobrevivência" que se tornou um grande sucesso, "O Impossível" (2012), era crucial que o público não só se colocasse no lugar dos personagens, mas quase que vivenciasse o que os jovens passaram. Só assim entenderiam as condições que levaram à decisão por se alimentar dos corpos.

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O diretor espanhol J.A. Bayona durante as filmagens de "A Sociedade da Neve", em cartaz na Netflix
O diretor espanhol J.A. Bayona durante as filmagens de "A Sociedade da Neve", em cartaz na Netflix Imagem: Divulgação

Para que o público entendesse exatamente o que as pessoas fizeram e o que vivenciaram ali, seria muito importante que o público conhecesse o contexto do que aconteceu. E é a solidão e a geografia, o frio, a falta de comida. Se o contexto é importante, a verdadeira transgressão do livro que uso como fonte (o de Pablo Vierci) é que a perspectiva e o ponto de vista da história não é o 'das pessoas que comem', mas, sim, das pessoas que deram seu corpo para que os outros pudessem voltar. J. A. Bayona

Para além do grande valor de produção, das cenas de ação (a sequência do acidente é impressionante), da reconstituição histórica, da fotografia impressionante, do elenco impecável, as discussões a respeito da dimensão religiosa ou espiritual, antropofagia ou o canibalismo, trazem a profundidade e a atualidade que dão relevância a esta releitura de uma história já clássica e que já foi tratada de outras formas no cinema, seja em ficção quanto documentário.

Se os mais religiosos debateram a dimensão do pecado e da culpa, antes de serem convencidos que era a única opção para se sobreviver, os laicos argumentaram que um pacto de entrega de seus próprios corpos para salvar a vida dos que fossem sobrevivendo seria necessário, justamente para que a sensação de culpa não dominasse a quem permanecesse.

Tanto quanto os planos de logística da trupe, este pacto ético e a união os mantiveram vivos, como em um exemplo muito drástico de que a sobrevivência em sociedade, seja quão pequena ou em que condições ela exista, só é possível graças a uma ética colaborativa e comum. Precursores do conceito de doação da vida e de órgãos? Sim, os sobreviventes participaram de campanhas sobre o tema no Uruguai. Exemplo de liderança, capacidade de sobrevivência e trabalho em equipe? Também.

"Quando li o livro, fiquei impressionado com uma espécie de sentimento subjacente que está presente ou visível na história. E isso é um sentimento de culpa dos sobreviventes. Eles não viveriam em paz consigo mesmos. Depois de assistir ao filme com eles, entendi ainda mais que eles precisavam deste filme porque a ideia que ficou foi a dos heróis voltando, que eles haviam sobrevivido a esta experiência. Mas, então, eles sobreviveram porque outras pessoas não sobreviveram e permitiram que eles voltassem. E então foi importante mudar o ponto de vista e dedicar e entregar o filme a todos eles, os sobreviventes e aqueles que não voltaram", explicou Bayona.

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"Todos foram igualmente importantes nesta história. Acho que agora isso deu paz aos sobreviventes", completou o cineasta.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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