Flavia Guerra

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Opinião

'Folhas de Outono': história de amor nada açucarada, sagaz e cheia de humor

O cineasta finlandês Aki Kaurismaki é um sujeito único. Com seu humor peculiar, um olhar muito atento e sagaz sobre as lógicas que tomamos como certas e normais, mas que muitas vezes são apenas ridículas, faz um cinema com um tempo próprio. É quase fora de tempo para os não acostumados com sua forma cortante de contar histórias muitas vezes cheias de desencanto, dureza e senso crítico, mas sempre com muita humanidade.

Com linguagem simples, mas nunca simplória, planos fixos, tempos que parecem desencontrados, direção de arte que, ainda que contemporânea, algumas vezes parece quase teatral, o diretor faz um cinema peculiar e incomparável, ainda que haja quem o compare a nomes como o norte-americano Jim Jarmusch e até mesmo o alemão Rainer Fassbinder.

Dito isso, Kaurismaki fez do genial "Folhas de Outono" ("Kuolleet Lehdet") um dos grandes filmes de 2023. Não por acaso foi premiado no Festival de Cannes 2023 com o Prêmio do Júri como é pré-finalista ao Oscar de Melhor Filme Internacional 2024 pela Finlândia e ainda garantiu a Alma Pöysti a indicação a Melhor Atriz de Comédia ou Musical no Globo de Ouro 2024, que será entregue no domingo, dia 7 de janeiro, no qual também concorre a Melhor Filme Internacional.

Interessante é que está na categoria de comédia, pois não se trata de uma comédia típica. Aliás, pode-se dizer que é a comédia romântica menos romântica dos últimos tempos, no sentido açucarado da palavra. Também é o romance menos forçosamente engraçado. Ao subverter e ironizar o próprio gênero das comédias românticas, Kaurismaki faz algo que anda raro no cinema contemporâneo. Em meio a tanta dureza do mundo real, ele conta uma história de amor com humor, leveza, mas sem se distrair de temas como a Guerra da Ucrânia, a precarização do trabalho no mundo neoliberal e pós-moderno, a questão dos refugiados, a solidão das grandes cidades, alcoolismo, entre outros temas. É uma comédia estranha, é romântico, é duro e também terno e, por tudo isso, é um autêntico Kaurismaki.

Questionado no Festival de Cannes 2023 se deixou o tradicional olhar político de seus filmes prévios (como "O Porto", "O Homem Sem Passado" e "O Outro Lado da Esperança"), ele respondeu, irônico: "Este é meu filme mais político desde o último".

Os atores Jussi Vatanen e Alma Pöysti, ao lado do cineasta finlandês Aki Kaurismaki ( à dir.) o tapete vermelho de Cannes 2023 para a estreia de "Folhas de Outono"
Os atores Jussi Vatanen e Alma Pöysti, ao lado do cineasta finlandês Aki Kaurismaki ( à dir.) o tapete vermelho de Cannes 2023 para a estreia de "Folhas de Outono" Imagem: Divulgação

De fato. Aparentemente, "Folhas de Outono" parece mais leve que seus trabalhos anteriores, mas dá um recado simples e importante: em tempos de conflitos e guerras tão estúpidas quanto banais na sanha humana pela disputa por poder, o mundo precisa, e merece, de histórias de amor.

Sutil em sua estranheza, é nas entrelinhas do cotidiano da protagonista Ansa (Alma Pöysti) que o cenário político entra. Ela é uma típica jovem da classe operaria, trabalha em um supermercado, tem poucos amigos e se orgulha de manter sozinha seu pequeno apartamento. Ela tem um copo, um prato, um conjunto de talheres e um rádio, que a acompanha nas refeições e traz as notícias de uma guerra que parece distante, mas que permeia todo o mundo atual. Enquanto come a lasanha pronta que esquenta no micro-ondas, escuta sobre os bombardeios na Ucrânia.

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"Nessas cenas, é como se nada estivesse acontecendo, mas também como tudo estivesse acontecendo. Então, era impossível não ter as notícias da guerra ali. Isso precisava ser capturado de alguma forma. Kaurismaki percebeu que colocar isso em um filme seria como registrar este momento da História e também uma evidência, uma testemunha de algo que sempre que alguém vir o filme no futuro vai entender que não podemos, como humanidade, esquecer o que está acontecendo hoje", declarou Alma em entrevista a Splash.

Ainda que seu cotidiano seja monótono, aos fins de semana, Ansa e sua amiga Tonja (Alina Tomnikov vão a um bar-karaokê relaxar, beber e, claro, cantar. Em uma noite elas conhecem Raunio (Martti Suosalo) e Holappa (Jussi Vatanen), dois operários da construção civil tão solitários e melancólicos quanto elas. Ansa e Holappa imediatamente se encantam um pelo outro. Entre idas e vindas, eles trocam não contatos do WhatsApp, mas ela dá seu número de telefone anotado em um papel para ele, que, claro, perde o papel.

Ansa (Alma Pöysti)  sua amiga Tonja (Alina Tomnikov ) em "Folhas de Outono", de Aki Kaurismaki
Ansa (Alma Pöysti) sua amiga Tonja (Alina Tomnikov ) em "Folhas de Outono", de Aki Kaurismaki Imagem: Divulgação

É tão trágico quanto engraçado o que Holappa encara para reencontrar Ansa em vários sentidos. Ele é um talentoso trabalhador, mas, por conta do alcoolismo, vive perdendo os empregos que consegue. Entre idas e vindas, sua jornada faz pensar principalmente em quão frágil e solitários estamos (ou somos). Ao mesmo tempo, impossível não rir das peripécias involuntárias de Holappa. É este equilíbrio entre o trágico e o patético que Kaurismaki encontra que faz de "Folhas de Outono" este filme tão especial.

Ansa (Alma Pöysti ) e Holappa ((Jussi Vatanen) em cena de "Folhas de Outono", filme de Aki Kaurismaki que concorre ao Globo de Ouro 2023
Ansa (Alma Pöysti ) e Holappa ((Jussi Vatanen) em cena de "Folhas de Outono", filme de Aki Kaurismaki que concorre ao Globo de Ouro 2023 Imagem: Divulgação

Sobre a forma nada clichê com que Kaurismaki conta a história de amor entre sua personagem, Alma comentou a Splash que adorou trabalhar com o cineasta e com Vatanen (ator prestigiado na Finlândia). "Acho que é o filme que precisamos agora porque o mundo está em um momento muito assustador. Mas ainda assim você pode se apaixonar. Além disso, como sugere o filme, o humor é uma forma de sobreviver neste mundo. E quando a vida está difícil, existe o humor e o carinho. E é isso que temos a nosso favor. Mas não é de uma forma açucarada. É esta comédia romântica áspera, obscura e com um acabamento único", comentou a atriz.

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A atriz pondera que "Folhas de Outono" é um "filme muito honesto e, de alguma forma, não foge dos problemas, da aspereza da vida, das sombras. Mas ainda sugere o cuidado como uma força contrária ao cinismo. Isso lhe dá algum tipo de esperança, como uma esperança real de que não seja tarde demais."

Que não seja tarde para o Globo de Ouro reconhecer o valor desta pequena joia de filme. E que o Oscar também valorize a tempo o trabalho de Kaurismaki. Resta saber se, neste atual cenário internacional tão conturbado, Kaurismaki vai estar tanto na cerimônia de entrega do Globo de Ouro neste domingo quanto na do Oscar, em 10 de março, caso seja finalista, o que saberemos em 23 de janeiro. Certo mesmo é que "Folhas de Outono" é imprescindível e pode ser visto nos cinemas e, em breve, na Mubi.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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