Abusos e greve: filmes em Cannes são ofuscados por protestos em 1° dia
Ameaça de greve dos trabalhadores do festival, protestos por melhores condições de salário e trabalho, ameaça de denúncias públicas de abusadores do cinema francês e uma onda #MeToo — maior presença de mulheres na competição (este ano são apenas quatro entre 22 filmes).
Além de filmes que tratam de temáticas como a Guerra na Ucrânia ("A Invasão", de Sergei Losnitza), um jovem Donal Trump ("O Aprendiz", de Ali Abassi) e "Lula", de Oliver Stone, sem esquecer da representação indígena nas telas e no júri, na figura da atriz Lily Gladstone (de "Assassinos da Lua das Flores"), além dos novos longas de Francis Ford Coppola ("Megalopolis") e David Cronenberg ( "The Shrouds") e Paolo Sorrentino ("Pathernope").
Para um primeiro dia, o Festival de Cannes 2024 já provou que vai ser uma edição tão politizada quanto atenta às pautas que movem o mundo atual. No entanto, vale lembrar que Thierry Frémaux, o diretor artístico do evento, comentou na conversa com a imprensa um dia antes, que por vezes nos concentramos demais nas polêmicas em vez de concentrar no cinema.
Como resposta, a atitude do júri presidido pela cineasta Greta Gerwig em relação a tal questão foi justamente afirmar que só o fato de "assistir cinema e engajar com um filme de forma séria faz parte da discussão sobre os temas difíceis do mundo porque cada cineasta, cada ator aqui hoje trouxe o que eles sustentam em um filme que fazem, sejam eles roteiristas, diretores, atores, produtores", como comentou Greta Gerwig, diretora de "Barbie", a primeira mulher a dirigir um filme que faturou mais de US$ 1 bilhão de dólares na história.
E acho que se a gente a gente está genuinamente se engajando com um filme, está se engajando com tudo, com o que foi pensado com cuidado, considerado, que cresceu com o tempo. E certamente acho que é importante considerar isso. E a natureza de Cannes leva isso tudo em consideração. Greta Gerwig
Para ela, a 'coisa maravilhosa do cinema' é que uma forma de arte lenta, um filme pode levar anos para ser feito desde que é concebido: "Toda vez que vemos um filme, ele representa anos e anos de trabalho. Ao mesmo tempo, é uma forma de arte que dura. E nesse espaço, artistas de todo o mundo podem dizer algo extremamente específico, algo de seu ponto de vista."
'Minha visão de mundo'
Lily Gladstone sente, em seu segundo ano consecutivo em Cannes, a responsabilidade de carregar uma história que agora começa a ganhar espaço nas telas e também atrás delas. Prestes a lançar o longa "Fancy Dance" (O Rito da Dança", que estreia em 28 de junho na AppleTV+), de Erica Tremblay, cineasta norte-americana de origem indígena como ela, a atriz conversou com Splash.
É uma grande responsabilidade, claro. Mas estou feliz em estar em Cannes pela segunda vez e sinto que eles querem meu olhar, minha visão de mundo.
Com diretores, produtores e profissionais indígenas cada vez mais realizando filmes e séries em todo o mundo, Lily representa esta nova etapa de um audiovisual que pretende ser mais inclusivo. "Sinto que nós indígenas reconhecemos a representação que cada um traz, em todo o mundo, ainda que sejamos incrivelmente diversos. Ainda há uma identidade no sentido de como nós vivenciamos o mundo e como resistimos. E resistimos muitas vezes por causa das histórias que contamos."
Sem querer homogeneizar, Lily ressaltou a importância do cinema para a sobrevivência cultural dos indígenas de todo o mundo. A mesma resistência cultural que a diretora libanesa Nadine Labaki defendeu. "E estou muito orgulhosa de fazer parte do júri de Cannes. E ainda mais orgulhosa porque venho de um país que passa por grandes dificuldades. Estar aqui é um triunfo, uma prova de resistência cultural que vale a pena", disse a diretora de "Cafarnaum", que concorreu à Palma em 2018.
Além de Greta Gerwig, Lily Gladstone, Nadine, o júri é formado pelos atores franceses Eva Green e Omar Sy, o italiano Pierfrancesco Favino, os diretores Hirokazu Kore-eda, do Japão, e Juan Antonio Bayona, da Espanha, e a roteirista turca Ebru Ceylan.
Greta e sua trupe não fugiram dos temas polêmicos, mas defenderam a força da arte e da beleza até mesmo quando questionados sobre a questão de Gaza. Foi o caso do italiano Pierfrancesco Favino, que defendeu que o júri e Cannes tenham um "espaço livre" para se ser e pensar.
"Quando falo de um lugar livre, falo da vida real também. Acho que procuramos pela beleza na vida. Uma das coisas que os cineastas buscam é que há um significado no que fazemos. Que a gente possa dialogar com as pessoas, que possam dialogar com a melhor parte das pessoas. É por isso que eu decidi ser um ator. Se a gente está buscando a beleza, então estamos pensando e buscando a paz", declarou Favino.
Sobre as questões relacionadas ao movimento #MeToo na França e a ameaça que paira de que se revelem nomes de profissionais que assediaram mulheres do audiovisual no país, Greta afirmou que se trata de um movimento contínuo de lutar por justiça, respeito e por mais igualdade nos sets e fora deles.
Eu tenho feito filmes e frquentado festivais de cinema por cerca de 20 anos e isso tem sido uma questão na minha vida. Tudo mudou muito. Há muito o que se fazer ainda, mas certamente estamos indo na direção certa. Nos filmes que estamos vendo também. E todos os anos eu torço para que haja mais e mais mulheres representando, mais mulheres no cinema. Greta Gerwig
"Acho que isso nos leva de volta ao questão de quanto tempo se leva pra fazer um filme. 15 anos atrás eu não podia imaginar o numero demulheres que temos hoje, de mulheres não só na direção, mas também na produção e em todas as posições", concluiu ela, que afirmou que Eu apoia os movimentos dos trabalhadores. "E espero que o festival e os trabalhadores possam apoiar o festival e é muito importante que as pessoas tenham proteção e um bom salário", concluiu.
O festival
Ao longo da quinzena, cuja competição oficial começa nesta quarta com a sessão de "Wild Diamond", de Agathe Riedinger, e de "The Girl with the Needle", de Magnus Von Horn, vai ter todo um mundo em ebulição exibido na tela do Palais des Festivalde Cannes e, certamente, seu olhar político e social vai ser refletido nas escolhas das Palmas, entregues em 25 de maio.
Certamente também a competição será mais instigante que o longa de abertura, exibido após a cerimônia oficial realizada na noite de terça-feira, quando Merry Streep recebeu a Palma de Ouro pela carreia das mãos de uma emocionadíssima Juliette Binoche. Depois de uma abertura protocolar e correta, o longa "Le Deuxième Acte ("O Segundo Ato"), de Quentin Dupieux, trouxe uma comédia estrelada por Louis Garrel, Léa Seydou e Vincent Lindon.
Com metalinguagem sobre um filme sendo rodado e dirigido por um cineasta que é também uma inteligência artificial, o longa questiona os temas do mundo contemporâneo, como as pautas identitárias, a tecnologia e o medo do cancelamento.
Cheio de boas ideias, pesa a mão nos diálogos intermináveis e em um humor que, como é do gênero, pode funcionar bem para o público francês, mas não seduz a plateia mais internacional.
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