Flavia Guerra

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Opinião

'The Apprentice' faz retrato cirúrgico de Trump, um monstro muito humano

"The Apprentice", ou "O Aprendiz", em referência, e ironia, direta ao programa que o empresário e ex-presidente dos EUA Donald Trump apresentou por anos na TV, é um dos filmes mais comentados do Festival de Cannes 2024.

Isso se deve muito ao fato de contar a juventude e a ascenção de um dos homens mais polêmicos da história contemporânea recente, sem medo de cutucar a onça com a vara curta. Dirigido pelo iraniano radicado na Dinamarca Ali Abassi, o longa traça um retrato que humaniza seu personagem principal (vivido por Sebastian Stan, de "Soldado Invernal") e retrata muito além da figura alaranjada e cheia de caras e bocas que se costuma ver no noticiário.

Ao mesmo tempo, não se furta de mostrar Trump como uma figura quase sociopata, disposto a tudo para alcançar seus planos, incapaz de se conectar emocionalmente com seu mentor (Roy Conh, vivido por Jeremy Strong), de sua família e até mesmo de sua própria mulher, Ivana Trump (Maria Bakalova, de "Borat").

Ivana, aliás, é o ponto central de uma das cenas mais polêmicas de "The Apprentice", que rendeu uma ameaça de processo de Trump, pois revela um episódio em que, após ganhar de presente da mulher uma espécie de manual para encontrar o Ponto G, ele a humilha e a estupra no chão da caríssima mansão em que moram.

Ainda que o filme se inicie com um aviso bem claro de que se trata de uma obra de ficção e que se trata de personagens fictícios, é mais do que óbvio que o filme, e até mesmo esta sequência tão controversa, é baseado em fatos. Talvez fatos "aumentados" e exagerados na forma como o filme aborda as questões, mas com um pé na realidade. A própria Ivana, falecida em 2022, já havia comentado sobre o caso do estrupo há alguns anos.

Donald Trump, o real, não comprou a história de que se trata de uma ficção e declarou, em comunicado oficial à revista Variety, enviado por seu porta-voz oficial, Steven Cheung, que "entraremos com uma ação judicial para abordar as afirmações flagrantemente falsas desses falsos cineastas."

"Esse lixo é pura ficção que é sensacionalista e traz mentiras há muito desmascaradas. Tal como ocorre com os julgamentos ilegais de Biden, trata-se de uma interferência eleitoral das elites de Hollywood, que sabem que o Presidente Trump irá retomar a Casa Branca e derrotar o seu candidato preferido porque nada do que fizeram funcionou", disse ele.

Abassi, que em seu longa anterior, "Holy Spider", concorreu à Palma de Ouro em Cannes 2022 ao retratar também um caso real de um psicopata que matava prostitutas no Irã, não tem medo de temas polêmicos e com "The Apprentice" finca os pés com força no cinema de Hollywood, sempre ávido por cinebiografias polêmicas. Outro filme do cineasta, "Border", premiado na mostra Um Certo Olhar de Cannes 2018, é um dos filmes mais instigantes e originais da década, que faz o caminho contrário, aliás, ao revelar a humanidade que há em uma personagem considerada uma espécie de ser quase monstruoso.

De volta a "The Apprentice", em ano de eleição norte-americana, estrear em Cannes um filme como este é levantar atenção não somente para o personagem, seja na ficção, seja o real, mas também colocar um espelho diante da sociedade contemporânea. Não apenas a dos Estados Unidos que o elegeram em 2016, mas também do mundo, que tem, em vários continentes, eleito pastiche, ou seja, cópias mal-acabadas de uma figura machista, pouco empática e que, como afirma no próprio filme, que despreza a classe política, a quem ele afirma que basta dar dinheiro para deixarem fazer o que quiserem.

O lado mais sombrio de Trump em "The Apprendice" é, na verdade, como lida com seu mentor e espécie de padrinho no mundo dos grandes negócios, o advogado e promotor Roy Cohn. Mediador político, que foi conselheiro do senador Joseph McCarthy durante o período de "caça aos comunistas" na 1950, Cohn também foi uma figura controversa.

Seu interesse em Trump para além do paternal ou fraternal é sugerido na primeira sequência do filme, sua homossexualidade é claramente retratada em cenas em que o jovem empresário o surpreende em uma festa em companhia de outros homens, mas, fato histórico, os "conselhos" de Cohn ao então a Dwight David Eisenhower, (que governou os EUA de 1953 a 1961), fez com que ele banisse os homossexuais de serem do governo federal.

Conh tem simpatia pelo jovem e perdido Trump, que tenta superar seu duro e sarcástico pai nos negócios imobiliários da família e quer se tornar um dos homens mais poderosos e ricos dos EUA. Com certa pena de Trump, Cohn mostra a jovem o caminho das pedras e assume processos que a família enfrenta, além de o auxiliar a conseguir redução de impostos e, então, financiar a reforma de um dos hotéis mais emblemáticos de Nova York, o Commodore.

A partir daí, a relação entre os dois passa por altos e baixos e Trump segue à risca os três conselhos de ouro que ouviu do mentor: "Ataque em todos os momentos, negue tudo e nunca, jamais, admita a derrota."

Cohn não ensinou a Trump a ingratidão, mas é o que recebe quando o pupilo se torna cada vez mais poderoso e misógino, tratando Ivana como um mero bibelô por quem "não sente mais nada, nem atração sexual". Tudo piora quando a pandemia de HIV assola o mundo no início dos anos 1980. É como o empresário lida com o antigo mentor que também serve como a pá de cal em qualquer empatia que o público poderia sentir pelo personagem.

Na verdade, com uma narrativa ágil, competente, cuja fotografia ousa a mudar de estética conforme as décadas mudam, "The Apprentice" conta a história de "como nascem os monstros" e do quão solitários eles podem viver em suas Trump Towers.

A alma de Trump parece tão falsa quanto seu bronzeado e vai se corrompendo à medida que sua barriga cresce. Ele tem obsessão por ser magro, mas nega qualquer possibilidade de fazer exercícios, pois prefere a "ajuda" das anfetaminas, que também o ajudam a não dormir, pois "é preciso fazer negócios".

O incômodo do empresário com os quilos que ganha é habilidosamente bem retratao pelo diretor para construir o retrato de um homem que não aceita nem suas próprias fragilidades, afinal, ele é um "matador" em tempo integral. Destaque para a cena em que Trump faz pela primeira vez intervenções para retirar a gordura abdominal e o escalpo da calvície. Seu corpo inerte em uma cirurgia funciona como uma metáfora da própria narrativa, uma autópsia do próprio caráter do personagem que retrata.

Abassi faz um retrato duro, mas, ao final de tudo, revela como nossas monstruosidades são características muito humanas. Transformar homens como Trump em heróis ou vilões absolutos é onde mora o perigo. "Na verdade, Trump devia ver o filme antes de nos processar. Acho que ele não o odiaria", arriscou o diretor na coletiva de imprensa do filme em Cannes.

Sem distribuição ainda nos EUA, "The Apprentice" tem chances boas de levar um prêmio de direção e até atuação em Cannes 2024 e, se chegar às salas norte-americanas, iniciar bem seu caminho rumo ao Oscar 2024.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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