Flavia Guerra

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Opinião

'Divertida Mente 2': fofa, Ansiedade é engraçada até que toma conta de tudo

Para tratar de "Divertida Mente 2" para além da animação deliciosa que faz o público rir e chorar com a saga da garota Riley e, no fundo, das nossas próprias emoções e experiências que criam nossas memórias, vale uma consideração sobre o estado ansioso do mundo — principalmente do brasileiro.

Já virou clichê e é consenso afirmar que a ansiedade é o mal da sociedade contemporânea. E o Brasil não fica, infelizmente, atrás quando esse é o assunto. Segundo o último levantamento global da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre transtornos mentais, o Brasil é o país com o maior número de pessoas que sofrem do transtorno de ansiedade, com cerca de 9,3% da população com ansiedade caracterizada como patológica.

Dito isso, se fôssemos literalmente desenhar o bichão da ansiedade, talvez o resultado fosse uma criatura medonha, gosmenta, talvez verde, de olhos esbugalhados, irritada e irritante. E como achar graça e ter afeto por esta emoção tão ambígua? E como, então, levar a ansiedade na boa? Lidar bem com ela, até mesmo abraçar, ficar amigo dela e, principalmente, explicar para nossa própria ansiedade que ela faz parte de nós, mas não pode e nem vai dominar nossa cabine de comando mental? Pois "Divertida Mente 2" consegue o feito de mais uma vez desenhar as emoções, cativar o público, fazer rir e chorar.

Alegria (na voz de Miá Mello) até que tenta ser amiga da Ansiedade (Tatá Werneck) em "Divertida Mente 2"
Alegria (na voz de Miá Mello) até que tenta ser amiga da Ansiedade (Tatá Werneck) em "Divertida Mente 2" Imagem: Divulgação / Disney/Pixar

A Ansiedade do filme é uma graça. Antes de mais nada, ela é laranja, uma cor que não é superestimulante à primeira olhada, como a vermelha Raiva, mas que pode enjoar facilmente se presente demais. Ela é descabelada, claro, magrinha, agitada, pequenininha e ocupa todos os espaços se movimentando com uma agilidade irritante e uma energia absurda. De olhos esbugalhados, ela quer fazer amigos, mas está distraída demais tomando conta de tudo para que tudo dê certo, prevendo cada possível fracasso, rejeição, não dá espaço para quase nenhuma outra emoção, nem mesmo as que chegaram com ela: Vergonha, Inveja e Tédio. A Nostalgia, tadinha, mal sai da cozinha.

Mas quem não consegue mesmo conviver bem com a Ansiedade (dublada no Brasil pela ótima Tata Werneck) é a Alegria (na voz da também ótima Miá Mello), obviamente. Afinal, como ter espaço para ser feliz em uma mente que quer controlar tudo e não para um segundo para contemplar e viver o momento?

Só que a ansiedade é sim uma emoção básica que, em níveis normais, acompanha-nos em momentos agudos, como a véspera de uma viagem, o primeiro dia na escola ou no emprego novo, uma prova ou teste importante. O problema é quando ela sai do controle, ocupa todos os espaços da mente, obriga-nos a visualizar todos os cenários negativos de uma situação ou quer controlar tudo para que nada saia errado e não sintamos medo, vergonha, raiva ou tristeza.

Trama

Em "Divertida Mente", o primeiro, de 2015, acompanhamos a menina Riley desde bebê, quando a Alegria era a emoção chefe da cabine de controle da mente da personagem. À medida que ela crescia e entrava em contato com o mundo, emoções como Raiva, Nojinho, Medo e Tristeza se revezavam em situações hilárias e emocionantes. Foi fascinante ver como a equipe da Pixar conseguiu não só desenhar as emoções básicas, mas também como as memórias-base, as ilhas da memória e as convicções, que ganham espaço e importância em "Divertida Mente 2".

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Se no primeiro filme da saga entendemos que a Alegria não vive sem a Tristeza e que todas as emoções em equilíbrio são essenciais para uma mente saudável, agora Riley chega aos 13 anos e a puberdade bate à porta, ou melhor, chega chegando com uma bola de demolição, quebrando tudo e trazendo um novo painel de controle.

Alegria (voz de Miá Mello)  e Tristeza (Katiuscia Canoro) levam uma nova emoção ao "Sistema de Convicções" ou "sistema de crenças", que compõem o senso de identidade de Riley, cada uma pode ser ouvida com o toque de uma corda.
Alegria (voz de Miá Mello) e Tristeza (Katiuscia Canoro) levam uma nova emoção ao "Sistema de Convicções" ou "sistema de crenças", que compõem o senso de identidade de Riley, cada uma pode ser ouvida com o toque de uma corda. Imagem: Disney / Pixar / Divulgação

Alerta vermelho para o caos que a adolescência traz. O painel de controle parece estar desregulado e qualquer botão acionado produz emoções intensas. Junto com a reforma, chegam a Ansiedade (ela veio na frente e cheia de malas, claro), a Inveja (pequenina, insegura e com olhos enormes), a Vergonha (rosa, grandona, desajeitada, com seu agasalho de capuz) e o Tédio (roxo, com sua franja emo e seu aplicativo de onde aciona o painel de controle, pois é "cool" demais para se levantar do sofá).

Mas é a Ansiedade quem dá as cartas e se torna quase uma protagonista, ou antagonista. Afinal, Riley está prestes a entrar para o Ensino Médio, quer também entrar no time de hóquei das meninas mais velhas e está prestes a perder as duas melhores amigas, que vão se mudar de escola. Ela descobre isso numa viagem para o acampamento de hóquei de fim de semana e vive um misto de raiva, tristeza, vergonha e muita ansiedade ao se sentir traída pelas amigas que vão abandoná-la, ao querer ser aceita no time e pelas mais velhas e impressionar a treinadora, que é quem escolhe as novas jogadoras.

Ela, a Ansiedade

Vergonha, Inveja, Tédio e Ansiedade chegam para bagunçar e dar mais complexidade a "Divertida Mente 2"
Vergonha, Inveja, Tédio e Ansiedade chegam para bagunçar e dar mais complexidade a "Divertida Mente 2" Imagem: Divulgação / Disney /Pixar
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O cenário está pronto para a ansiedade brilhar e é exatamente isso que ela faz. Mais uma vez, a Pixar conseguiu manter o caráter da saga e apostar em uma receita que não tem como dar errado. Quem amou o primeiro vai adorar ver os personagens agora trabalhando como um time para que Riley, apesar das novas emoções e desafios, permaneça fiel às suas convicções.

Quem não se apaixonou pelo primeiro, pode se divertir mais com uma trama em que a menina Riley tem mais espaço para mostrar quem é, em ações que correm bem em paralelo ao que se passa em sua mente. Adolescer é um mistério, um grande desafio e quem é adolescente vai se identificar, quem já foi também. Quem é pai de adolescente, pode sair até mais aliviado ao entender como a Ansiedade não é este monstro todo se tiver ajuda.

A história desenvolve bem os conflitos por que Riley, e todo adolescente passa em maior ou menor escala: o medo da solidão, o medo de não ser aceito, a necessidade de se enturmar e a dificuldade de socializar, a paúra de passar vergonha em público, a ansiedade em fazer tudo dar certo, a ansiedade de prever tudo dando errado e a tristeza que vem disso.

Riley (centro) e as melhores amigas Bree e Grace: adolescência é fase de sofrer de ansiedade e entender quem se é de verdade
Riley (centro) e as melhores amigas Bree e Grace: adolescência é fase de sofrer de ansiedade e entender quem se é de verdade Imagem: Reprodução / Disney / Pixar

Enquanto no mundo real Riley se afasta cada vez mais de seu senso de si mesma, de sua própria identidade, que foi construída com todo cuidado pelas emoções na primeira infância, em sua mente o Vale da Convicção corre perigo, com memórias cada vez mais ansiosas e laranjas.

Evitando aqui os spoilers, como na vida e na mente (e vice-versa) manter-se fiel a si e agradar aos outros para ser aceito, amado, admirado, invejado e até temido? "Divertida Mente" desenha para a gente e faz rir com ótimas sacadas como o Vale do Sarcasmo (quando mesmo aprendemos a usá-lo ao lado da sua amiga inseparável, a Ironia, que não está no filme, mas quem sabe surge numa próxima sequência?). Até mesmo o chatíssimo tédio é uma ferramenta útil para se sobreviver às pressões sociais da idade. E quem nunca encarou uma crise de ansiedade, tem a chance de finalmente entender quem sofre com elas constantemente.

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Como afirmou Dani Calabresa em conversa com Splash, não sabemos se a Disney estava querendo necessariamente falar de saúde mental com "Divertida Mente 2", mas o certo é que os profissionais da área adoram o filme também. Tanto que a Pixar realizou uma sessão exclusiva para o canal Cinema Therapy com o react (as reações) à primeira meia hora do filme. Foi sucesso!

"Ansiedade e Alegria são como dois pais discutindo como podem cuidar melhor de um filho, mas os dois estão fazendo isso do lugar do amor. Elas só querem que Riley seja feliz, mas discordam sobre como fazer isso."

"O que vocês fazem aqui é mais do que entretenimento que as pessoas podem fugir da realidade na matinê com os filhos. Vocês trazem algo que educa de uma forma prática, informativa e que emociona. E isso é algo incrível de estar envolvido", comentou o terapeuta Jonathan Decker, resumindo muito bem esta nova aventura.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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