Flavia Guerra

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'O Rito da Dança' dá complexidade a personagem indígena que vive genocídio

Em "O Rito da Dança", em cartaz na Apple TV+, Lily Gladstone vive Jax, membro da nação Seneca-Cayuga em Oklahoma, no sul dos Estados Unidos. Ela vive de bicos e pequenos golpes e, quando sua irmã desaparece, vê-se sozinha com a sobrinha adolescente Roki (Isabel Delroy-Olson) — obcecada por reencontrar a mãe.

Além do desaparecimento em si, está se aproximando a data da dança que elas fazem juntas todos os anos o Pow Wow (ou powwow) um grande festival que reúne as nações indígenas de todos os Estados Unidos para preservar sua cultura e seus rituais. O ato em que Roki e sua mãe participam na "Fancy Dance", ou o "Rito da Dança" do título em português, traz mães e filhas que bailam juntas e celebram o poder e a ancestralidade.

Mas que poder celebrar quando a vida da jovem mãe indígena, que trabalha como dançarina em um clube noturno local, é tão descartável que a polícia não se esforça além do protocolar para tentar descobrir seu paradeiro?

E meio a este cenário complexo, Jax, ainda que não seja sempre um exemplo impecável para Roki, começa a questionar as pessoas, brancas e indígenas da cidade, espalha cartazes, cai na estrada em busca de qualquer pista que a possa levar até a irmã e a impeça de também perder a guarda da sobrinha para o pai ou para o Estado.

Isabel Deroy-Olsen (Roki) e Lily Gladstone (Jax) em cena de "O Rito da Dança", de Erica Trembley
Isabel Deroy-Olsen (Roki) e Lily Gladstone (Jax) em cena de "O Rito da Dança", de Erica Trembley Imagem: Apple TV/ Divulgação

"O Rito da Dança" seria mais um bom filme de "who done it" (ou de "quem foi"? ), de um mistério que merece ser solucionado e de uma trama que envolve também assuntos de família e violência contra a mulher. No entanto, o segundo longa-metragem dirigido pela cineasta de origem indígena Erica Trembley vai além ao também trazer personagens indígenas contemporâneos que, ainda que não sejam obviamente perfeitos, são o retrato de uma sociedade que até hoje os exclui e despreza.

"É muito difícil sobreviver a um genocídio contínuo sem ter as consequências do que isso significa. E às vezes isso significa que as pessoas caem em dependência química. Às vezes isso significa que as pessoas caem, sabe, acabam tomando decisões ou acabam caindo em uma vida de crime. Essas são todas as respostas para o tipo de mundo que foi dado a nós como povos originários norte-americanos", respondeu Erica quando questionada por Splash sobre a complexidade que deu principalmente à personagem de Lily Gladstone, indicada ao Oscar de Melhor Atriz 2024 por "Assassinos da Lua das Flores".

"E então fico sempre tão chateada e com raiva quando a resposta da polícia a uma pessoa desaparecida é: 'Bem, essa pessoa usa drogas ou bem, essa pessoa é uma profissional do sexo. Bem, essa pessoa é? Não, não importa qual é o estilo de vida de uma pessoa. Ela merece ser encontrada. Elas merecem justiça. Elas merecem ser buscadas. E então acho que nós queríamos dar uma profunda humanidade a esses personagens", continuou.

"E isso, apesar do fato de que eles podem nem sempre estar tomando decisões com as quais concordamos, eles são seres humanos vivos e que respiram e que merecem a vida, que merecem ser tratados com respeito e humanidade E ser encontrados. E então acho que foi de propósito que esses personagens complicados. Isso porque nós somos complicados como seres humanos e todos cometem erros."

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Lily Gladstone, que em "O Rito da Dança" vive a indígena Jaz, que tente encontrar sua irmã desaparecida e não perder a guarda da sobrinha
Lily Gladstone, que em "O Rito da Dança" vive a indígena Jaz, que tente encontrar sua irmã desaparecida e não perder a guarda da sobrinha Imagem: Apple TV/ Divulgação

"O Rito da Dança" é filmado com estilo que lembra o documental, com luz controlada, câmera solta, ágil e sequências sempre muito próximas das personagens, como se o espectador também estivesse com elas em sua jornada, a cineasta conta uma história que também conhece de perto.

O número de desaparecidos indígenas nos EUA é imenso e principalmente o de mulheres. Situações de abordagem policial que pedem o passaporte a indígenas norte-americanos, já deduzindo que, por não serem brancos, necessariamente são estrangeiros, não são raras e uma cena dessas está no filme, fazendo com que o público ou ria, ou sinta vergonha pelo tamanho preconceito do oficial que as aborda.

"Elas estão escrevendo a história, descobriram que tiveram a mesma experiência e de muitas maneiras. Então, todas as cenas vêm de experiências vividas. E isso, sabe, não precisa ser expositivo. Você não precisa enfiar nada goela abaixo de ninguém se for algo real, se as pessoas puderem sentar no cinema e puderem simplesmente se envolver com isso", analisou Gladstone, que também é de origem indígena e foi criada na reserva Blackfeet em Montana.

Isabel Deroy-Olson (Roki) e Lily Gladstone (Jax) em cena de "O Rito da Dança", em cartaz na Apple TV+
Isabel Deroy-Olson (Roki) e Lily Gladstone (Jax) em cena de "O Rito da Dança", em cartaz na Apple TV+ Imagem: Apple TV+ / Divulgação

"E eu sinto que quando a história vem de cineastas indígenas, você entende a perspectiva de dentro desse mundo, vive as experiências em vez de sempre olhar para isso como se fosse um aquário. Ou como se você estivesse andando em de um zoológico humano e tentando observar.Sabe, é isso que a arte deveria fazer. É algo transcendente. A arte constrói pontes, constrói compaixão e compreensão", concluiu.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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