Surpreendente, 'Sunny' une humor, thriller e robôs para falar de relações
A premissa de "Sunny" é improvável, quase rocambolesca, mas surpreendentemente funciona. Ela faz rir e pensar sobre relacionamentos, luto, intimidade, amizade entre mulheres e até o poder e a influência da IA (Inteligência Artificial) e dos robôs em um futuro que está muito próximo de nós.
A série que acaba de estrear na AppleTV+, é inspirada no romance "The Dark Manual", de Colin O'Sullivan, e estrelada por Rashida Jones, atriz querida do circuito cult, que divide a cena com Hidetoshi Nishijima, o astro japonês de "Drive my Car" (Oscar de Melhor Filme Internacional 2022), e um ótimo elenco. "Sunny" é o nome de "uma" robô, mas tem também um segundo significado que a regra de não dar spoiler impede de ser explicada. Na trama, que se passa em um futuro não muito distante, os "homebots", os robôs de companhia, são peça tão cotidiana quanto os celulares.
Rashida é Suzie Sakamoto, uma americana que vive em Kyoto, no Japão. Ela é inteligente, perspicaz, dona de um humor ágil e sarcástico e claramente tem dificuldade em fazer amigos e se relacionar. Seu porto-seguro são o filho Zen (Fares Belkheir) e o marido Masa Sakamoto (Hidetoshi Nishijima). Depois de perder os dois em um acidente de avião, ela tenta lidar com o luto e, ao mesmo tempo, com a espera pelos corpos deles, que não foram encontrados ainda.
Entre um porre e outro (a única coisa que a ajuda a dormir e fugir da realidade), ela ganha Sunny de um funcionário da empresa em que Masa, seu marido, trabalhava. Ela detesta robôs e, até o momento, pensava que ele projetava refrigeradores. Mas Tanaka, o funcionário, vivido por Jun Kunimura, a convence de ficar com o homebot, pois é um presente de Masa, que projetou Sunny especialmente para ela. Atenção especial para a atuação de Sunny, interpretada pela ótima Joanna Sotomura, que usou uma roupa especial para ter suas expressões e gestos capturados e incorporados à robozinha.
A partir daí, a vida de Suzie, que já estava um caos, fica cada vez mais complicada. Masa sempre foi um marido afetuoso, atento e presente. Mas ele, que Suzie conheceu em um bar que frequentava muito e continua a frequentar depois do luto, nunca falou do trabalho com robôs, não contou muito sobre sua adolescência e nem do porquê de ter passado anos vivendo como um hikikomori. Mais de um milhão de pessoas no Japão, a grande maioria masculina, vive isolada e sem contato com o mundo exterior e são conhecidos como hikikomori, que significa "isolado em casa".
Suzie também nunca contou para Masa do real motivo que a fez deixar tudo nos Estados Unidos para recomeçar sua vida do zero em um país em que não consegue nem mesmo dominar o idioma (ela justifica explicando que é disléxica e, no seu caso, sua condição a impede de falar outra língua fluentemente). É no relacionamento entre Suzie e Masa que reside o principal ingrediente dramático da trama e que faz com que tudo não seja um pastelão, mas ganhe tons mais densos.
É meio engraçado porque vivemos um no outro ou ele vive na minha memória. Na série também brincamos muito com a noção do que é real, a veracidade ou a verdade dessa memória. Então é interessante porque acho que as memórias e a maneira como nos lembramos das coisas podem confundir, especialmente se você estiver em um momento traumático em sua vida ou se estiver tentando se lembrar do passado de certa forma Rashida Jones, em entrevista a Splash.
"Para mim, esta parecia a âncora da série, o fato de Masa e Suzie se apaixonarem e realmente estarem conectados um com a outro, mesmo que eles, às vezes, em suas vidas, se sentissem como apenas ilhas, completamente divorciados da civilização ou intencionalmente como se estivessem fora da civilização, eles se encontraram nesse mar de isolamento. E esse é o coração, a principal artéria da série. E nada realmente funciona se isso não parecer real para as pessoas, nosso passado e nossa conexão um com o outro", completou a atriz.
Já Hidetoshi observou que "Sunny" também trata de como a vida, ainda que não de forma tão rocambolesca como na série, pode mudar de uma hora para a outra. "De certa forma, é uma comédia. Mas também é assustador. A gente acredita um pouco que amanhã será um dia igual a todos e que a vida continuará. Mas, na verdade, as coisas podem mudar drasticamente em um segundo. E é isso que acontece com Suzie. Há alguém em quem ela confia absolutamente e para quem ela abriu o coração também. Mas talvez essa não seja a pessoa que ela achou que era. E isso é como se o mundo estivesse realmente se virando contra você. É uma coisa assustadora de se vivenciar", comentou o astro japonês.
Então ela encara o luto e, ao mesmo tempo, ela tem que descobrir qual é a verdade. É uma comédia muito sombria também. E isso é apenas um dos elementos que podem ser observados porque temos Rashida interpretando essa personagem, a Suzie. Mas, às vezes, quando há o momento mais trágico é quando há leveza também. Mas, de qualquer forma, acho que isso é muito plausível o relacionamento deles. E eu acho que com certeza também há um mistério. E sou muito grato por termos conseguido criar essa dinâmica. Hidetoshi Nishijima, a Splash.
Enquanto tenta se acostumar a Sunny, Suzie conhece a bartender Mixxy (a artista e youtuber annie the clumsy) no bar que frequenta, e uma amizade improvável, mas genuína parece nascer, o que a ajuda a não só lidar com o luto profundo, mas a entender também porque a Yakuza está atrás de algo que Masa criou e deixou. Sim, a trama vai ficando cada vez mais complexa, mas também mais divertida. Para melhorar, Suzie não se entende com sua sogra, Noriko ( a genial Judy Ongg), que vive o luto de uma forma peculiar, mas que é responsável pelos momentos mais cômicos da série.
No meio da trama rocambolesca, flashbacks vão nos fazendo pensar e entender sobre como se pode amar ou conviver com uma pessoa por toda vida sem necessariamente conhecer de fato sua personalidade ou seus pensamentos. "Sunny" poderia dar muito errado tamanha a ousadia da criadora Katie Robbins em misturar gêneros como quem prepara um sukiyaki. Tudo junto, mas misturado com cuidado, aos poucos, vai garantindo um ritmo que convence e diverte, mas que nunca cai no óbvio.
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Quero receberA direção precisa de Lucy Tcherniak também assegura uma narrativa em que o cenário sempre sedutor do Japão não caia em clichês turísticos e esteja a serviço da história. Enquanto Suzie, Mixxy e Sunny fogem da Yakuza e também investigam o que há de fato por trás do desaparecimento de Masa, do uso dos robôs e da IA, uma história de amizade entre mulheres, tema sempre bem-vindo e que pode ser mais explorado de várias em séries e filmes, ganha o protagonismo. O fato de que Katie mudou o, por assim dizer, gênero do robô criado pelo escritor Colin O'Sullivan, que no livro é masculino e rivaliza um pouco com Suzie, também é crucial para este ponto a ser explorado.
Eu estava interessada em virar isso de cabeça pra baixo e fazer do robô uma mulher robô. Em parte porque eu realmente estava querendo uma oportunidade de escrever sobre amizade feminina. Eu sou uma mulher com dois filhos pequenos e com muito trabalho. E eu não tenho mais tempo na minha vida para realmente me conectar com minhas amigas regularmente. E eu sinto tanta falta delas e anseio por essas relações. E então eu estava querendo falar sobre isso. Katie Robbins, criadora da série, a Splash
"Criar essa relação de amizade entre duas mulheres foi realmente emocionante. E então trazer Mixxy como a terceira personagem e criar uma espécie de triângulo amoroso de amizade feminina parecia realmente delicioso e animador. Costumo ser atraída por histórias femininas, mas essa série subverte as expectativas do que isso significa. Essa não é uma comédia típica de amigas ou algo assim. Eu não sei. Ela tem sua própria personalidade", completou a roteirista.
De fato. "Sunny" é este caldo bem temperado, com um certo toque de olhar estrangeiro, mas com respeito e humor, sobre a sociedade japonesa e os choques culturais que, no fundo, tornam as pessoas tão interessantes e a diversidade necessária no mundo contemporâneo. A questão, que também permeia o livro, do quanto nos conectamos com máquinas, objetos, jogos e, hoje em dia, redes sociais, jogos, IA, e projetamos neles uma satisfação, felicidade, amizade e tantas outras emoções ganha a leitura leve, mas nunca boba nessa rara história que tem seu quê de ficção científica, mas não abre mão do humor e do drama para falar, no fundo, da natureza humana.
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