Natalie Portman: 'Mulheres são cobradas para servir aos sonhos dos outros'
"A Mulher no Lago" ("Lady in the Lake"), que marca a estreia de Natalie Portman como protagonista de séries, é o clássico caso de trama em que não importa tanto o "quem", mas principalmente o "como". Explicando melhor, logo no início do primeiro episódio, disponível na Apple TV+, a voz da narradora Cleo Johnson (Moses Ingram, ótima no papel) revela que ela está morta e se direciona à protagonista Maddie (Portman, sempre magnética) como em uma conversa franca, que não poupa palavras mais irônicas e duras sobre o quanto cada uma delas levam vidas tão diferentes, ainda que morem na mesma cidade, a gelada Baltimore.
"Na minha morte eu era Cleo Johnson. Mas morta eu me tornei 'A Mulher no Lago". Você disse que sabia quem tirou minha vida, Maddie Morgenstern. Você disse que ninguém se importava até que você apareceu. A verdade é que você chegou no fim da minha história e fez dela o começo da sua", diz Cleo no prólogo da série, inspirada no best-seller de da autora Laura Lippman, publicado em 2019 - e também inspirado em dois crimes reais que ocorreram em Baltimore, nos Estados Unidos, nos anos 1960 - enquanto um homem joga seu corpo nas gélidas águas do lago.
Se depois de morrer ela virou a Mulher do Lago, quando viva Cleo é uma mulher negra em uma sociedade racista que passa por uma revolução de costumes em que a população negra luta pelo fim do segregacionismo. Para criar os dois filhos sem poder contar muito com o dinheiro do marido (o humorista Slappy Johnson, vivido pelo surpreendente Byron Bowers), faz vários trabalhos, desde manequim viva em uma sofisticada loja até contadora dos negócios de um mafioso, Shell Gordon (Wood Harris) — que domina o "Numbers Game", espécie de jogo do bicho, usa uma boate de QG e tem vários outros negócios na cidade, incluindo empréstimos que faz à população negra local.
Maddie é uma mulher de classe média alta judia que tinha um futuro promissor como jornalista, mas que teve de se contentar em ser uma dona de casa perfeita, cuidar de seu marido insosso, de seu filho adolescente rebelde, cozinhar perfeitamente segundo a tradição kosher e jamais pensar em ter uma carreira, além e sempre se comportar impecavelmente nos eventos sociais de sua comunidade.
Ao mesmo tempo, ainda que vivendo realidades tão diferentes, elas enfrentam questões que são comuns às mulheres tanto na década de 60, quando se passa a história, quanto hoje: machismo, julgamento moral, conservadorismo e a ideia de que a mulher muitas vezes tem de escolher entre ser uma boa mãe e boa esposa ou realizar seus sonhos profissionais. Ter uma vida sexual satisfatória? Talvez mais impossível do que a própria carreira profissional.
"Eu acho que as mulheres são muitas vezes cobradas pelos muitos papéis que elas têm de desempenhar para atender às necessidades dos outros e para servir aos sonhos de outras pessoas. E é um ato de coragem o de prestar atenção aos seus próprios sonhos", declarou Natalie Portman em entrevista a Splash.
"E perseguir seus próprios sonhos muitas vezes é taxado de egoísmo ou de implacável, ou [a mulher é tratada como] excessivamente ambiciosa. A mulher é frequentemente criticada. E então, você vê essas duas mulheres realmente buscando, escrevendo seu próprio destino e não se submetendo às exigências de seu tempo", completou a atriz, que compõe uma Maddie tão fragilizada quanto obcecada por resolver dois grandes mistérios em torno da morte de duas mulheres em "A Mulher no Lago".
O primeiro mistério é quem matou a menina Tessie (Bianca Belle), desaparecida enquanto via o desfile de Ação de Graças com os pais. Inconformada com a indiferença de seu marido e filho diante do sumiço da garota, Maddie sai em busca de Tessie e a encontra morta à beira do lago gelado da cidade. É a partir daí que Maddie começa sua própria revolução pessoal, sai de casa, muda-se para um apartamento modesto no bairro em que a população negra é maioria e tem de se adaptar ao local e à sua nova vida.
No entanto, uma mulher separada não tinha muitos direitos à época. Maddie não pode nem mesmo vender seu carro sem a autorização do marido. Enquanto tenta resolver o primeiro crime e se tornar finalmente repórter do jornal local, feito por brancos e para brancos, aliás, e que jamais cobriu com atenção e seriedade os tantos casos de violência envolvendo a população negra da cidade, Maddie encara o desafio de mudar a relação com o filho, que admira e odeia a própria mãe na mesma medida, lidar com seus desejos e frustrações e vencer o machismo que domina não só a sociedade e a polícia local como a redação em que sonha em trabalhar.
"As mulheres são muito mais do que os papéis que todos nós desempenhamos", disse Moses. "Eu penso com tanta frequência que dizem para as mulheres qual é o lugar delas. Então, para Maddie e Cleo, nos anos 60, você vê a Maddie tentando vender um carro e ela não consegue. É sempre tão importante lembrar que as mulheres também são seres singulares com mentes próprias para fazer escolhas por nós mesmas, agir por nós mesmas", acrescentou a atriz, que cresceu em Baltimore e que dá veracidade a uma Cleo sempre angustiada, equilibrando vários pratos para ter uma vida digna.
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Quero receberO segundo mistério que atormenta Maddie é justamente o assassino de Cleo, que, como já sabemos, também narra a história em momentos específicos.
Entender que as trajetórias de Cleo e Maddie vão se cruzar de forma mais por acaso no primeiro episódio e presumir que elas vão novamente se encontrar de alguma forma com o avançar da trama é crucial para compreender que "A Mulher no Lago" pode até ser uma trama de suspense, um noir contemporâneo que subverte o gênero (para começar, a femme fatale passa longe, bem longe desta história), mas é sobre como as duas mulheres tão diferentes, que têm também muito em comum, se movimentam em uma sociedade machista, racista, patriarcal e conservadora que a série se concentra.
Dirigida por Alma Har'el (de "Honey Boy", elogiado filme biográfico estrelado por Shia Labeouf), a série faz da atmosfera outro grande trunfo. A ambientação de "A Mulher no Lago" é densa, sombria, mas também traz cores vivas, cenas de musical, um texto em off impecável, com direção de arte e figurino, além da fotografia, também luxuosos.
Alma, que é jovem mas já tem uma extensa trajetória tanto na carreira de diretora de clipes, documentários e fez sucesso com sua primeira ficção, aposta todas as suas fichas criativas na série. Ela foi da equipe de roteiristas, dirigiu todos os episódios, foi showrunner e ainda também participou da montagem. Alma, que, assim como Natalie, é americana nascida em Israel, também criou a "Free the Work" (https://freethework.com/) - iniciativa que luta e promove a igualdade e a justiça salarial de profissionais do audiovisual e da mídia de todo o mundo. Diretora do filme "Shadow Kingdom: The Early Songs of Bob Dylan", que acompanha a turnê do cantor em 2021 com tom intimista e muita proximidade, a cineasta sabe criar atmosfera com maestria. Em "A Mulher no Lago", ela constrói um universo onírico, em que as tensões muito reais são afetadas por um certo clima de sonho, pelo surrealismo e pela eterna busca do maravilhoso.
Há algo de impalpável, algo sempre inalcançável na realidade de cada personagem de "A Mulher no Lago". Há sempre aquela sensação de um sonho do qual se acorda justamente no momento em que algo maravilhoso, inacreditável ou horrível estava para acontecer. Cleo e Maddie estão sempre "quase lá", mas são dragadas ou acordadas pela dureza de uma realidade complexa.
Ninguém melhor que Har'el para combinar a complexidade visual e de estilo que a história pedia com a complexidade de temas e questões sócio-políticas e comportamentais. Isso tudo sem jamais esquecer que, no final das contas, "A Mulher do Lago" tem de entreter e manter seu público intrigado até o último dos sete episódios, que vão ao ar toda quarta na AppleTV+. Afinal de contas, trata-se ainda de um thriller, que tem cenas musicais deliciosas (a melhor amiga de Cleo é a cantora Dora Carter (Jennifer Mogbock), que evoca Nina Simone em performances de tirar o fôlego.
"A Mulher no Lago", aliás, é o resumo do que Alma representa no audiovisual. De origem judaica, ela mantém um olhar sempre crítico e o compromisso com sua ética e coerência. Casada com um ator negro, Byron Bowers, sabe o que é viver uma relação interracial em uma sociedade ainda racista e acompanha de perto o que seu marido enfrenta. Defensora dos direitos e da valorização das mulheres não só do setor audiovisual, ela também lutou muito no início de sua carreira para ser reconhecida.
Tudo isso é parte fundamental de quem é Alma Har'el, mas é sua verve criativa, seu trabalho obsessivo em levar a história de Maddie e Cleo para a tela e de criar primorosamente a atmosfera sedutora da série que devem ficar em primeiro plano quando se assiste à série.
"Acho que é definitivamente um aspecto de mim mesma que resume os últimos anos de experiência que eu tive sendo uma mulher diretora e tentando deixar minha marca e contar minha história enquanto também lidava com a ilusão e a realidade, tanto de identidade quanto de gênero, nos Estados Unidos, e a disparidade também entre judeus e negros e minha própria relação com isso, meu próprio relacionamento pessoal com isso, porque meu parceiro é negro. Então, todas essas coisas definitivamente emergiram como material que funciona com esta série", comentou a Splash.
"Eu gostaria de pensar que há outros aspectos para mim que pertencem ao eterno e ao maravilhoso e que estão além de gênero e identidade, sabe. E, na verdade, sempre trabalhei tanto quando tinha meus vinte anos para deixar de me ver como este corpo e deixar de me ver como essa identidade e para começar a ver com o que está além de tudo isso, e me conectar ao eterno e o maravilhoso e o espiritual. E parece que o mundo te fecha às vezes te puxa para baixo para lidar de novo e de novo com essa pele. Então eu acho que a série é sobre esse contraste", conclui.
'O oprimido também pode ser o opressor'
De fato, "A Mulher no Lago" é sobre tudo isso e sobre as tensões e sobre os crimes e sobre mulheres que sonham e ousam, dentro e fora da tela, mas, também sobre opressão. No material de divulgação da série, Natalie, que é israelense, declarou que também ficou muito entusiasmada em trabalhar com Alma "porque ambas estávamos interessadas anos 1960. Ou 'O que acontece quando as pessoas que sofrem perseguição também descobrem que podem oprimir outras?' Isso é muito diferente de um típico mistério de assassinato porque é um trabalho psicológico profundo", declarou a atriz, cuja avó é de Baltimore e viveu na cidade nos anos 1960.
Sobre "A Mulher no Lago" também dialogar com o fato de que o oprimido também pode se tornar um opressor, Alma concorda e afirma a Splash: "É a natureza, de certa forma, a natureza do trauma. Quando não está sendo trabalhado na verdade acontece com outras pessoas. Então, estou menos surpresa com isso em alguns aspectos, Mas eu ainda estou no meio disso, no ciclo de, sabe, o ciclo disso. Então, especialmente com o que está acontecendo agora, obviamente, no mundo. Então é um ciclo, sabe, é um ciclo de dor que viaja pelo mundo que nunca vai parar até que a consciência seja usada."
"E consciência só pode ser usada, na verdade, praticando empatia e praticando a compreensão das outras forças sob as quais todos nós estamos operando e que nos tornam inimigos um do outro. Então, muito disso está na série. Como o personagem Shell Gordon diz: "Não é a cédula ou a bala. É o banco. Sabe, é sobre as pessoas por aí que estão ganhando dinheiro em cima da fragmentação, da separação, do racismo, por falta de união. Podemos ir às ruas e lutar por tudo o que queremos e demonstrar tudo o que queremos. Mas enquanto não houver uma expansão da consciência que não leve a mais racismo e mais violência, então esta opressão só vai continuar."
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