Em Gramado, 'O Clube das Mulheres de Negócios' surpreende e incomoda
Um filme repleto de humor e incômodos que provoca e, não necessariamente, agrada, mas que não deixa a plateia indiferente jamais. Assim é "O Clube das Mulheres de Negócio", novo longa da cineasta Anna Muylaert, primeiro desde "Que Horas Ela Volta?" e primeiro a ser exibido na competição oficial do Festival de Gramado 2024.
Basicamente trata-se de uma história em que um grupo de mulheres que ocupam posições de poder na sociedade se reúne em um clube de campo para falar de um negócio proposto pela líder e dona do clube onde o encontro ocorre, Cesárea (vivida por Cristina Pereira). No meio disso, um jornalista novato (Candinho/Rafael Vitti) e um fotógrafo experiente (Jongo/Luiz Miranda) chegam para entrevistar as integrantes do clube e se deparam com as bizarrices da associação, que, na verdade, refletem as dinâmicas da própria sociedade.
Detalhe crucial: neste clube, os papéis estão invertidos, e as mulheres dominam desde sempre o cenário. Os homens são os 'maridos troféus', os que estão em depressão ao descobrir uma traição e não se contentam em ganhar uma bolsa nova para "ficarem felizes" (dupla vivida por Irene Ravache e André Abujamra), os que usam roupas minúsculas e dançam para suas mulheres.
Elas discutem planos milionários que envolvem poder e corrupção, enquanto eles esperam. Elas fazem orgias enquanto o marido, muito mais novo, sofre sem entender o desaparecimento da esposa (dupla formada por Ítala Nandi, maravilhosa aos 82, e pelo italiano Fernando Bili). Elas portam armas, são grosseiras e obcecadas por violência (Maria Bopp, Katiuscia Canoro e Verônica Debom) e comentem assédio sexual (Grace Gianukas), banalizam a dor do homem agredido e até o responsabilizam por ter sido assediado (Cesárea/ Cristina Pereira).
"O Clube das Mulheres de Negócio" é um filme que nasce claramente do desejo de falar justamente das dinâmicas de poder, que envolvem, obviamente, as dinâmicas entre os gêneros, classes e raças. Em entrevista a Splash, a diretora contou que a vontade de escrever o filme surgiu após sua jornada de lançamento do sucesso de "Que Horas Ela Volta?".
Quando eu passei o que as europeias chamam de teto de cristal, que é: a mulher pode fazer sucesso até um limite, que é este teto de cristal, e se você passar, vai se cortar. Anna Muylaert
"Eu fiquei muito revoltada. E quis fazer esta inversão para tentar ao menos. Porque se você fala disso com homens, eles não entendem. E até mesmo de falar de assédio. Veja o que aconteceu na coletiva de imprensa do filme. Uma das atrizes, (Cristina Pereira) disse que sofreu um assédio com 12 anos e quando foi pedir ajuda na escola, não deram. Era dessa revolta que está dentro de mim que eu queria falar", completou.
Para falar de tudo isso, Anna, que é também roteirista do filme, criou uma trama cheia de alegorias, em que literalmente as feras estão à solta e as dinâmicas da sociedade brasileira, para além do machismo universal, também está representada de várias formas.
No clube de Cesárea, que vale milhões, ela cria onças por puro capricho. Quando Jongo descobre isso, pede a Candinho, que, não por acaso, é neta da toda poderosa Cesárea, que mostre os animais para ele. Só que eles descobrem que três das onças fugiram da jaula e estão à solta.
É neste ponto em que o tom de comédia do filme começa a mudar para o drama, pendendo para a comédia do absurdo, o surrealismo e até o thriller. Quem viu "Durval Discos" (que levou sete Kikitos em Gramado 2002) vai identificar pontos de contato entre os dois filmes e entender que, para tratar de temas tão incômodos quando cotidianos, a tragicomédia pode ser o melhor recurso.
Para Anna, há duas leituras possíveis de "O Clube das Mulheres de Negócio": "Uma é a da inversão. Só de ver os corpos invertidos já causa um constrangimento. A outra é: 'Se as mulheres estivessem no poder, e o poder é dinheiro porque o dinheiro é machista, será que elas agiriam da mesma forma? Será que elas seriam tão abusivas?"
Há quem leia pelo viés da comédia do absurdo, há quem prefira o tom de quase terror. Há quem tenha ficado insatisfeito com o desfecho, que traz as três onças em uma vingança genial diante da soberba do homem que quer dominar até a natureza. Mas o fato é que Anna faz com "O Clube das Mulheres de Negócio" seu projeto mais amplo, mais arriscado e mais difícil.
Os desafios das filmagens, que incluem efeitos especiais, animais como arara, cobra, sapos, urubu, um cachorrinho decisivo para o desenrolar da história, cavalo e até capivaras, ficam nítidos na tela. Mas valem cada momento. Anna quebra não o teto de cristal, mas o telhado de vidro de uma sociedade brasileira forjada sobre os alicerces do machismo, do racismo e da escravidão, do classismo, da hipocrisia acima de tudo.
A cineasta descortina o eterno teatro do "está tudo bem" na superfície (o palco principal da reunião do clube) enquanto tudo pega fogo e a onça literalmente bebe água na cozinha, no porão e no subsolo deste jogo social. Os ecos de obras como "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade, "Macunaíma", de Mário de Andrade, "Pindorama", de Arnaldo Jabor, entre outros, podem ser ouvidos em alto e bom som.
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Quero receberJá os ecos de um Brasil contemporâneo, tão real quanto absurdo, permeiam cada cena. "A história começou sendo só sobre gênero e o Brasil veio entrando e eu fui dando corda porque, enfim, fui falando da brasilidade e da nossa forma. O Brasil é um país muito hipócrita. E o filme é sobre hipocrisia também."
Expor e dizer o que não é dito é um dos pontos fortes de "O Clube das Mulheres de Negócio". A cena do assédio, protagonizada por Candinho (Rafael Vitti) e tia Yolanda (Grace Gianoukas), provoca um imenso incômodo, mas é uma das mais potentes do filme. Da mesma forma que a cena em que a avó do rapaz, Cesárea (Cristina Pereira), ao ouvir o relato do neto, apenas diz que ele exagera e que "se continuar assim, nenhuma mulher vai querer casar com ele". É na conversa com Jongo que Candinho, envergonhado por ter sofrido assédio e não reagido, encontra escuta e acolhimento.
E foi, mais de 60 anos depois, que Cristina encontrou coragem e escuta para contar que a cena a tocou profundamente. Afinal, ela viu em sua personagem o mesmo descaso que enfrentou aos 12 anos, quando, após ser estuprada a caminho da escola católica que frequentava, apenas a indiferença das freiras.
Quando o Candinho chora, sou eu que choro e são muitas meninas de 12 anos, com aquela menina que estava a caminho do colégio. Mataram aquela menina. Cristina Pereira
"Ninguém veio me perguntar o que aconteceu comigo. Uma criança não chega atrasada na escola. Qualquer pessoa adulta descobre se uma criança sofreu uma violência, mas a pessoa finge que não viu", completou a atriz na coletiva de imprensa do filme, para surpresa e comoção da plateia, que chorou e a aplaudiu de pé, enquanto ela era abraçada e amparada por Anna e as atrizes do filme.
Como bem observou Anna, o filme nasce agora com o olhar do público, uma bomba que elas lançaram e que começa agora a reverberar. "O Clube das Mulheres de Negócio chega ao circuito em novembro e os estilhaços certamente vão atingir, fazer rir, incomodar muita gente e por em discussão muitas estruturas.
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