Flavia Guerra

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Reportagem

'Sou uma história entre milhões de histórias', relata atriz sobre estupro

Cristina Pereira é uma das grandes atrizes do cinema e da TV brasileira. Personagem crucial de filmes como "Mar de Rosas" (1975), de Ana Carolina, referência até hoje do cinema nacional, novelas como "Sassaricando" (1987), da obra-prima do humor "TV Pirata" (1988 a 1991), entre tantos outros trabalhos, Cristina é rosto conhecido e reverenciado também no teatro.

Em seu mais novo trabalho, ela vive a toda poderosa Cesárea de "O Clube das Mulheres de Negócio", longa de Anna Muylaert, que concorre no Festival de Gramado 2024. Empresária que comanda com mãos de ferro tanto o clube real de campo em que cria onças por pura diversão, ela também lidera o "Clube das Mulheres de Negócios".

Nesta reunião que ela convoca para tratar de uma proposta imperdível, estão as alegorias de várias posições da sociedade, geralmente ocupadas por homens, mas aqui em suas versões femininas.

A ruralista poderosa e assediadora (Grace Gianoukas), a que quer carreira política e trai o marido e não entende por que ele anda tão deprimido (Irene Ravache), a que faz orgia durante o almoço e deixa o marido sem saber por onde ela anda (Ítala Nandi), a cantora de funk, que tem alguma sensibilidade e é alvo da crítica das demais (Polly Marinho), a advogada inescrupulosa (Helena Albergaria), a bispa, Patrícia, líder evangélica milionária que quer comprar o Clube para atividades religiosas (Shirley Cruz).

Também tem a armamentista grosseira que quer ser presidente do Brasil (Katiuscia Canoro), além de suas sobrinhas fieis vividas por Maria Bopp e Verônica Debom, e a fiel administradora do clube de campo decadente, Brasília (Louise Cardoso).

Em sua posição durona, inescrupulosa e dominadora, Cesárea dá abertura ao neto, o jovem Candinho (Rafael Vitti), um jornalista recém-formado, para que ele entreviste as mulheres para uma matéria para o Tropical News, que chega acompanhado do fotógrafo veterano Jongo (Luiz Miranda). O rapaz vai encarar essas e outras feras, uma vez que a avó cria onças na propriedade.

Entre entrevistas constrangedoras, um assédio sexual que ele sofre, e as onças que escapam da a jaula e passam a aterrorizar a todos, Candinho conta para a avó o que tia Yolanda (Grace Gianoukas) fez. Quando questionada sobre os 190 casos de processos de assédio que ela responde, ela o assedia sexualmente e o humilha. Em vez de empatia e acolhimento, ele ouve da avó que ela não pode fazer nada, que ele exagera e, se continuar assim, "nenhuma mulher vai querer casar com ele".

Praticamente, Candinho se sente culpado e envergonhado por não reagir. Na coletiva de imprensa do filme, quando o assunto do assédio surgiu, Cristina surpreendeu a todos ao revelar, mais de 60 anos depois, que a cena em que não acolhe o neto a tocou profundamente, pois, aos 12 anos, foi estuprada a caminho da escola.

Quando o Candinho chora, sou eu que choro e são muitas meninas de 12 anos, com aquela menina que estava a caminho do colégio. Mataram aquela menina. Cristina Pereira

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A revelação aconteceu durante a coletiva de imprensa do filme, para surpresa e comoção da plateia, que chorou e a aplaudiu de pé, enquanto ela era abraçada e amparada por Anna e as atrizes do filme. "Ninguém veio me perguntar o que aconteceu comigo. Uma criança não chega atrasada na escola. Qualquer pessoa adulta descobre se uma criança sofreu uma violência, mas a pessoa finge que não viu".

Eu nunca falei sobre esse assunto enquanto minha mãe era viva. Era um assunto muito dramático, muito traumatizante para ela. Foi um segredo que ela guardou sozinha. Ela não tinha com quem falar. Deve ser muito difícil para a mãe também, pois ela deve se perguntar "por que aconteceu isso com minha filha? Será que deixei de fazer alguma coisa? Será que eu fiz alguma coisa? Cristina Pereira, em entrevista a Splash

Cristina, hoje aos 75 anos, comentou que o crime ocorreu em 1961, quando não se falavam sobre violência sexual e muito menos sobre educação sexual. "Não existia educação sexual. Não se falava de muitas coisas que hoje a gente fala. Esse diálogo que hoje em dia a gente tem. Eu era uma menina de classe média, minha mãe trabalhava. Meu pai nunca soube, pois minha mãe não quis que ele soubesse. Eu nunca conversei nem com minha irmã durante muitos anos. E agora eu queria falar pela primeira vez porque eu queria falar sobre a cena do Candinho."

"Ele é o culpado e ela banaliza a violência", comentou Cristina. "Como se ele estivesse fazendo drama. Diz que ele virou um fofoqueiro. Ela banaliza totalmente, ela descredibiliza ele totalmente, culpa ele. É o que acontece muito toda hora. Eu sou uma história desse tamaninho entre milhões de histórias", analisou a atriz.

Foi um fato que me marcou muito durante muitos anos. Um abuso desse nível, com essa violência com uma menina que não tinha nenhuma informação. Foi uma coisa horrível para mim. Eu fui pega totalmente a caminho da escola. Cristina Pereira

Para Cristina, "O Clube das Mulheres de Negócio" é uma obra de peso, que mexeu com o assunto com profundidade, que despertou assuntos que estavam intocados. "Mexeu e tocou em coisas internas nossas muito fortes. Todas nós falamos coisas muito fortes."

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Vai ser um grande sucesso no sentido mais profundo da palavra, no de cumprir o papel que ele tem. E que todos tenham a oportunidade de refletir sobre esses assuntos. Cristina Pereira

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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