'Apocalipse nos Trópicos' investiga influência evangélica na política
"O que vai acontecer com a democracia brasileira?", perguntou a cineasta Petra Costa ao Cabo Daciolo em 2020, quando filmava no início da Pandemia um documentário sobre o período "histórico, surrealista e distópico" e encontrou o pastor e deputado com um grupo de fieis abençoando as cadeiras dos congressistas falando em línguas.
O deputado federal respondeu que "Deus vai intervir e um governo cristão vai ser formar" e deu uma bíblia de presente a Petra, além de abençoá-la. Do momento "estarrecedor e esclarecedor" sobre as placas tectônicas que estavam se movendo há tempos na sociedade brasileira e na política do País, nasceu "Apocalipse nos Trópicos", novo documentário da cineasta que estreou nesta quinta-feira (29) mundialmente no Festival de Veneza, em sessão especial.
Se em "Democracia em Vertigem", indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2020, Petra investiga a formação social, histórica e política do Brasil e a ascensão da direita ao poder, em "Apocalipse nos Trópicos" ela investiga a estreita relação no Brasil entre política e a religião, com ênfase na recente ascensão da bancada evangélica nas últimas eleições.
"Eu não tinha consciência do nível de transformação da sociedade brasileira estava passando e da infiltração que a religião já estava tendo na política naquele momento e que só se aprofundou", comentou Petra, em entrevista a Splash no Festival de Veneza, onde o filme é exibido fora de competição, mas com muita atenção do público e da crítica internacional.
Na première mundial desta quinta-feira, a plateia que lotou a sala Casinò no festival aplaudiu efusivamente e mostrou muito interesse em entender mais não só sobre o Brasil, mas também sobre a estreita relação dos brasileiros com a religiosidade, a política e a combinação perturbadora entre as duas instâncias. Onde o fundamentalismo religioso encontra, ou se choca, com a democracia? Uma jornalista e curadora belga, que organiza um festival de "filmes perturbadores" em seu país, pediu à reportagem de Splash o contato de Petra para exibir o filme "perfeito para o festival". "Eu sempre exibo filmes do Brasil, pois a leva de filmes perturbadores brasileiros é sempre grande", afirmou ela, que preferiu não divulgar o nome.
De fato, "Apocalipse nos Trópicos" perturba e revela. Como bem explicou a cineasta e a produtora e roteirista do filme, Alessandra Orofino, apocalipse não significa o fim do mundo, mas sim "desvelar, tirar um véu para se enxergar a verdade". Nada mais revelador do que exibir em alto e bom som e imagem o quanto a estreita relação de figuras como o pastor Silas Malafaia com Jair Bolsonaro só aumentou nos últimos anos e sua forma de enxergar o Evangelho pauta não só a agenda de milhões de evangélicos no Brasil como até mesmo as palavras do discurso do ex-presidente em 7 de setembro de 2022.
Petra, que sempre se coloca muito ativamente como narradora e pensadora de seus filmes, em "Apocalipse nos Trópicos" se coloca novamente, mas de forma a também descobrir junto com o espectador o que está filmando, o que se revela diante de sua câmera, o que está aprendendo sobre as entranhas do poder no País. Foram mais de quatro anos filmando, acompanhando, aproximando-se do tema, dos personagens, filmando, editando, assistindo ao material, saindo novamente para filmar. Uma equipe imensa que, como muitos, tentou entender o fenômeno de um povo que precisa, da maneira que for, estar conectado à religião talvez para dar algum sentido à sua realidade tão rica, múltipla, complexa, desafiadora e perturbadora.
Ao acompanhar figuras como Malafaia, entrar e sua casa, ouvir seu discurso aguerrido mesmo em ambiente doméstico, que traz uma visão muito mais aguerrida e belicosa da fé e do cristão que a caridosa que muitos associam o cristianismo, a cineasta trata com respeito e sobriedade os personagens e o tema, mas não teme o vespeiro em que está mexendo.
A atual batalha espiritual, ideológica, política, econômica e, sobretudo de poder, travada no Brasil está intimamente ligada e sofre influência crucial do movimento evangélico e da ideologia apocalíptica que move esses líderes. Petra e sua equipem desvelam informações históricas, documentais, imagens exclusivas e perturbadoras de um Brasil que se ajoelha na rua para rezar pelas eleições, pelo seu candidato, pelo futuro da nação. Como negar este viés do Brasil? Como não negar, mas conseguir, como na fundação da democracia, separar Estado de religião, seja qual for, para, justamente, proteger todas as fés e religiões e não somente uma ou outra ou a da maioria?
"Apocalipse nos Trópicos" nos convida a fazer esta jornada, a aprender, a nos informamos e a nos questionar. É simbólico e contundente o fato de "Apocalipse nos Trópicos" ser exibido em Veneza, o mais antigo e um dos mais importantes festivais de cinema do mundo, que neste ano também traz documentários de grandes nomes como Errol Morris, que em "Separated" investiga a prática de separação de imigrantes ilegais nos EUA de seus filhos como tática de barrar o número de imigrações no país.
O mundo inteiro está padecendo desta pandemia. A pandemia mais grave é o fundamentalismo religioso e da extrema direita política, que ameaça a nossa sobrevivência enquanto espécie. Espero que este filme faca repercutir e que nos revele caminhos possíveis. Petra Costa, em Veneza
"É muito impressionante quando a gente conversa com jornalistas de outros lugares do mundo, com outros cineastas, outros artistas. A gente percebe que o fundamentalismo religioso não tem denominação", acrescentou Alessandra. "Ele pode ser cristão, ele pode ser de outras matizes. Então a gente tem o fundamentalismo religioso na política, no Brasil, nos Estados Unidos, mas também em Israel, mas também na Itália, mas também na Hungria, mas também na Índia".
"Apocalipse nos Trópicos" abre, aprofunda a discussão e certamente vai render muito debate no Brasil e nos países em que, mais do que os filmes, a realidade é perturbadora.
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