Nicole Kidman agita Veneza com 'Babygirl': 'Todos merecem o orgasmo'
"É sobre seus pensamentos íntimos, sobre segredos, sobre casamento, sobre verdade, poder, consentimento. Então, a linguagem do sexo é tão complicada, é difícil de se responder sobre sexo porque essa é a história de uma mulher, e espero que seja muito libertadora", definiu Nicole Kidman sobre o super aguardado "Babygirl", filme que ela estrela e é dirigido pela holandesa Halina Reijn. O longa fez sua estreia mundial em competição no Festival de Veneza, nesta sexta-feira (30).
A imensa expectativa em relação a "Babygirl" vem muito em função do filme trazer Nicole Kidman em cenas de sexo bastante realistas ao lado de Harris Dickinson (de "O Triangulo da Tristeza") e Antonio Banderas. Na trama, ela vive Romy, uma mulher poderosa, CEO de uma grande empresa de robótica, casada e mãe de duas adolescentes que, apesar de amar o marido, em 19 anos de relação nunca teve um orgasmo e não consegue encontrar escuta atenta do companheiro para seus desejos nada politicamente corretos. Ela então encontra na figura de um jovem estagiário o companheiro perfeito para, finalmente, ter prazer.
Questionada sobre como se sentiu nas cenas de nudez e sexo e como lida com o seu corpo, Nicole respondeu que para ela a questão era artística e sempre da personagem em cena.
Me questionei: "Como posso me entregar a esse personagem sem trair minha diretora?", porque sou uma atriz que se entrega ao diretor. Para "Babygirl", não pensei no corpo, mas na história para a qual me entreguei. Sabia que Halina não me exploraria. Não me senti explorada. Fiz este filme porque me interesso pela relação que as mulheres têm com seus corpos e no "gap do orgasmo" entre homens e mulheres. Porque a lacuna existe, mas todos merecemos o orgasmo!
Segundo longa de Halina, que se tornou conhecida como diretora com o sangrento "Bodies bodies bodies", "Babygirl" é "um filme sobre o desejo feminino e sobre uma mulher em uma crise existencial", como definiu a cineasta.
Se por um lado Romy é racional como os robôs de sua empresa e sabe liderar sua equipe, sobretudo sua assistente Esme (Sophie Wilde), com firmeza, por outro ela cai como uma presa fácil nos encantos e na lábia de Samuel (Dickinson), que já encanta a futura chefe no primeiro encontro, por acaso, quando controla um cachorro que ameaça atacá-la a caminho do trabalho.
Se na empresa e na vida, ela comanda, no jogo de sedução, a priori é ele quem exerce controle e fascínio sobre ela. Os caminhos levam, claro, a um envolvimento. Questões como o que é politicamente correto, o que é um jogo sexual consentido pelos dois, onde começa o envolvimento emocional e onde terminam os limites vão se revelando de forma engenhosa, em uma trama que não julga os personagens ou traz resoluções simplistas, mas que revela o quão contraditórios e complexos são os desejos e a própria natureza humana.
Falar do prazer da mulher também é parte importante desta trama que foge o tempo todo de soluções e interpretações rasas. A forma como Halina trata da ignorância masculina a respeito do que excita as mulheres é tão honesta e direta que chega a ser desconcertante. "Este filme também é sobre o orgasmo feminino, sobre o imenso 'gap do orgasmo'. Eu digo isso a vocês, anotem isso, homens. Isso também faz parte da graça deste filme", brincou, mas falando muito seriamente, a cineasta.
Por "gap do orgasmo" entende-se a diferença entre quantas vezes os homens chegam ao orgasmo em comparação às mulheres e o que se faz, ou não se faz, a respeito disso. Romy se cansou de fingir orgasmo para um marido que ela ama, mas que não entra nem no mesmo ritmo, nos mesmos jogos (verbais ou práticos) sexuais que ela e nem está disposto a ouvi-la e só se interessa quando ela propõe algumas dinâmicas básicas, mas que o tiram de sua rotina de sempre —com a qual ele chega ao orgasmo.
Quando Romy finalmente encontra alguém que sabe detectar o que ela gosta, que a estimula e que se importa se ela tem também prazer, o resultado é explosivo. Halina não tem medo de criar uma trama nada moralizante e nem de filmar cenas de intimidade em que o jogo entre Romy/Nicole e Samuel/Dickinson expõe o quanto sexo, desejo e poder estão intimamente conectados. A atriz, em um de seus grandes papeis, vive intensamente os momentos e não se poupa diante de uma camera que não a explora, mas que também não a esconde.
Sobre o desafio de fazer "Babygirl", a atriz comentou que se sentiu vulnerável, mas que é exatamente esta humanidade e naturalidade que ela quer encarar em seus trabalhos. "Me deixa exposta, vulnerável, e com medo de todas essas coisas quando é entregue ao mundo, mas fazê-lo com estas pessoas aqui foi delicado e intimista. A gora a gente está um pouco nervoso, minhas mãos estão tremendo, mas, ao mesmo tempo, estamos muito orgulhosos de ainda fazer parte de um festival como esse, que tem o cinema como prioridade, com filmes que ainda são feitos e, particularmente dirigido por mulher", declarou a atriz.
De fato, faz toda diferença tanto o roteiro quanto a produção e a direção de "Babygirl" estarem nas mãos de Halina. Ela, que como atriz atuou sob o comando de Paul Verhoeven em "Black Block" em 2006, traz seu olhar, o chamado " female gaze", para uma trama quer poderia ser um conto moral que pune a mulher como grande vilã ao final ou então que objetifica e fetichiza o corpo e os desejos de sua personagem principal.
Em certa cena, a cruzada, ou descruzada, de pernas da personagem de Sharon Stone em "Instinto Selvagem" (thriller erótico de Verhoeven que eternizou Stone como sex symbol) ganha um aceno de Halina. Questionada sobre o quanto seu filme não reproduz a lógica dos thrillers eróticos dos anos 80 e 90, mas sim escreve a história de uma nova forma, Halina não negou as referências, mas deixou claro que é de uma nova geração que ocupa o mundo, as telas e o imaginário com uma visão mais plural e realista principalmente sobre o que é o desejo da mulher.
"Todos nós, homens, mulheres, girafas, todos os seres, temos diferentes lados, temos feras dentro de nós. Para as mulheres, a gente não teve ainda muito espaço para explorar nosso comportamento. Não só sobre o quanto nós somos fortes, mas também o quanto somos fracas também. Eu fui criada por pais que não acreditam que somos bons ou maus, mas sim um pouco das duas coisas. E a gente precisa continuar jogando luz sobre isso porque quanto mais a gente reprime isso mais perigoso se torna", comentou a diretora quando questionada sobre porque de não punir Romy no final do filme, como em uma trama simplista dos anos 80 e 90 (ecos de "Atração Fatal" e Glenn Close não são mera coincidência).
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Quero receberPor isso que eu não quero punir nenhum de meus personagens, mas sim que eles apenas sejam eles mesmos, de forma que a gente realmente se conecte com eles e nos sintamos menos sozinhos
Realmente, para quem assiste a "Babygirl" com os olhos viciados dos thrillers que puniam as mulheres fatais, também sempre rasas e punidas no cinema noir, a trama pode decepcionar. Afinal, o quão condenável pode ser uma executiva que, insatisfeita com sua vida sexual com o marido, envolve-se com o estagiário? Ou uma assistente negra que usa, muito compreensivelmente, o que sabe para, finalmente, ter o reconhecimento que sempre mereceu na empresa, mas que nunca lhe foi dado pela chefe branca e privilegiada? Quais são os limites dos jogos de poder? Seja em uma empresa, em família ou entre quatro paredes?
E se fosse um homem no papel de Romy? Mas e se o estagiário, como afirma Samuel, soubesse muito bem o poder que tem em um jogo em que "dois adultos brincam" e que há consentimento e igualdade, pelo menos entre quatro paredes? Este espelhamento não é a chave para se ler "Babygirl" que, no fundo, também é um filme sobre conflito de gerações e de como os jovens de hoje resolveram e superaram diversas questões que, para eles, não renderiam nem mesmo um curta.
Em certa cena, uma das filhas de Romy, que é lésbica, está nadando e beijando na piscina de sua casa a vizinha. Quando a mãe, perturbada pela culpa que encara, diz que achava que a filha estava apaixonada pela namorada, a garota responde que está apaixonada, mas que estava só se divertindo, mutuamente, com a vizinha. Para a garota, monogamia nem chega a ser uma questão. E é com olhos generosos que ela também encara a crise da mãe. Com engenhosidade, Halina vai quebrando diversos clichés do melodrama de família, traição, thriller erótico e revelando um mundo contemporâneo muito mais complexo e interessante.
"Este também é um filme sobre o conflito de gerações e como as novas tratam estes temas de uma forma diferente e de como podemos aprender uns com os outros", observou a diretora.
"Eu costumava vir a festivais de cinema como Veneza, Berlim ou Cannes, com filmes que, na verdade, hoje seriam impossíveis de estarem aqui", disse Banderas. "Filmes que seriam altamente criticados e seriam lidos pelo viés do politicamente correto. Mas a gente não pode viver em um mundo em que o politicamente incorreto é estabelecido como forma de censura em relação a artistas e quando eu li o roteiro que Halina me deu, eu pensei: 'Ah, alguém que pensa fora da caixa. Alguém que tem força, coragem, e a mente para por na tela coisas quem todos nós pensamos de certa forma'", analisou o ator, que faz um marido querido, bom pai e, ao mesmo tempo, desatento à infelicidade de sua mulher.
A gente é prisioneiro de nossos instintos, nós somos animais. A natureza não é nada democrática. E agora estamos aqui, a gente não pediu para nascer, para ser humanos, plantas ou o que for. Somos presos ao que somos. E uma mulher falou disso em um filme que me orgulho de fazer. Antonio Banderas
Seguindo a tradição do cinema nórdico, que não teme mexer em vespeiros como desejo, questões de género, poder e sexo, seja qual o género de seus personagens, Halina pode não ser unanimidade em Veneza. Pode-se questionar as soluções de roteiro que Halina propõe, em algumas simplificações simbólicas que poderiam ser mais sutis, mas não se pode acusá-la de não ser corajosa ou provocadora.
Um crítico, tão ultrapassado quanto o personagem de Bandeiras em alguns aspectos, gritou "Vergonha!" ao final da sessão para a imprensa. Mereceu o desprezo e a indiferença dos colegas e preferiu como muitos, julgar em vez de tentar jogar junto com o filme e os personagens.
Há uma geração que se recusa a enxergar que boa parte da nova geração, seja homem ou mulher, joga um sexual muito mais complexo e horizontal. Mas, assim como diretoras estão escrevendo novos dramas eróticos no cinema, a sociedade também está, ao menos tentando, escrever uma nova história em que pelo menos o "gap do orgasmo" vai ser, se não superado, assunto a não ser nunca mais ignorado.
"Babygirl" foi adquirido no Brasil pela distribuidora Diamond Films, que também vai distribuir "Maria". Em breve, as datas de estreia serão divulgadas,
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