Ao narrar a saga de uma mãe, Salles conta a história da ditadura no Brasil
O que realmente me emociona no livro [Ainda Estou Aqui] é o fato de que é uma história extraordinária de uma família resistindo a um ato de violência e uma mulher se reencontrando em meio a isso. E eu me apaixonei por essa mulher. Eu a conheci. Mas o que Marcelo [Rubens Paiva] fez foi descobrir que sua mãe era de fato o coração desta família.
O comentário é do cineasta Walter Salles em uma conversa com jornalistas na manhã de hoje no Festival de Cinema de Veneza, onde o filme "Ainda Estou Aqui" faz na noite deste domingo sua première mundial.
Na sessão para a imprensa, pela manhã, houve aplausos fortes e, na coletiva de imprensa, os aplausos também foram consistentes.
O filme conta, sobretudo, a história de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, Eunice Paiva, mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva e mulher do deputado e engenheiro Rubens Paiva, morto em 1971 pela ditadura militar. Rubens Paiva foi levado da casa da família no Leblon, no Rio, para onde nunca mais voltou.
Se você olhar para 'Central do Brasil' e para os filmes que eu fiz antes, a jornada dos personagens de alguma forma se mistura com a história do país. É o que me interessa no cinema. E o livro era sobre isso. A jornada de Eunice se misturava com a história do Brasil nos anos horríveis, 21 anos [de ditadura militar] e, então, a reinvenção daquele mulher. Isso foi o que me tocou mais no livro. Eu voltei ao livro muitas vezes e finalmente ele [Marcelo Rubens Paiva] me deu a chance de filmá-lo.
Walter Salles
Salles foi o diretor dos filmes "Terra Estrangeira" (1995), "Linha de Passe" (que concorreu à Palma de Ouro em Cannes 2008) e "Abril Despedaçado", que concorreu ao Leão de Ouro em Veneza em 2001 e foi o último longa brasileiro a disputar o prêmio.
"Central do Brasil" levou o Urso de Ouro de Melhor Filme e o Urso de Prata de Melhor Atriz para Fernanda Montenegro no Festival de Berlim 1998.
Fernanda Montenegro, que pelo papel foi indicada ao Oscar, faz uma participação especial em "Ainda Estou Aqui" como Eunice já na velhice, quando sofria já de Alzheimer.
É sua filha, Fernanda Torres, quem vive Eunice na meia idade e que encara a longa jornada que começa com uma vida de dona de casa de uma família não rica, mas com vida confortável, cuidando de seus cinco filhos e do marido engenheiro.
É Fernanda quem dá a veracidade suave e legítima à dor que Eunice contém diante dos filhos e do mundo quando é também presa por 12 dias junto da filha adolescente e interrogada sistematicamente. A filha voltou um dia depois, mas Eunice passou a vida tentando saber o que de fato havia acontecido com o marido.
Quando questionada como foi viver a mulher que simboliza tanto a luta não só pela justiça no caso do assassinato do marido, mas também dos direitos primordiais em uma democracia, pois se formou em direito e foi um nome pioneiro na defesa dos direitos indígenas, Fernanda Torres declarou:
O Brasil ia ser um grande país. Um país da Tropicália, da arquitetura de Oscar Niemeyer e todo o modernismo. E esta geração foi repentinamente calada por um golpe de estado. E ela teve de aprender e a se reinventar e é engraçado como ela passou de viúva do Rubens Paiva a mãe de Marcelo. E a gente nunca soube dela. A gente sabia de certa forma, como a mãe de Marcelo, mas ela estava sempre escondida de certa forma que ela nunca tinha a vontade de vir a público. Mas ela foi uma heroína, uma mulher que encarou a tragédia, que evitou o melodrama. Ela não queria chorar na rua com sua família. Ela não queria que seus filhos se tornassem vítimas da ditadura. E o jeito que ela encontrou para fazer isso foi ficar em silêncio e sorrir. É inacreditável.
Fernanda Torres
E essa mulher reinventa a si mesma. Ela tinha uma vida burguesa. E ela volta para a faculdade, torna-se uma advogada, aos 46 anos, e aí encontra antropólogos incríveis em São Paulo, como Manuela Carneiro da Cunha, que trabalhou com Claude Lévi-Strauss. E eles a convidam para trabalhar com as terrar indígenas, nos anos 80, muito antes de a gente discutir a Amazônia e tudo. E ninguém sabia disso.
Fernanda Torres
Marcelo Rubens Paiva observou que levou tempo para escrever a história desde seu primeiro livro "Feliz Ano Velho", lançado em 1982, em que trata do acidente que o deixou tetraplégico, até 2015, quando lançou "Ainda Estou Aqui".
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Quero receberO primeiro livro tinha pouca coisa da minha família porque a gente ainda estava em uma ditadura quando escrevi e eu não podia escrever muita coisa. E eu não sabia o que tinha exatamente acontecido com o meu pai, o motivo da prisão da minha mãe e da minha irmã. Coisas que entendi muitos e muitos anos depois.
Marcelo Rubens Paiva
E, então, quando minha mãe passou a sofrer de Alzheimer, esquecendo coisas, eu senti o direito, eu senti que eu tinha que escrever algo sobre ela porque, como disse o Walter, eu descobri que ela era o centro da família. Mais do que isso, ela era a mãe de cinco filhos, sozinha, sem dinheiro e estava em risco por conta da ditadura. Nossa casa era vigiada o tempo todo, nossos telefones grampeados, minhas irmãs também foram presas quando estavam na universidade. Eu fui ameaçado. Quando ela começou a perder sua memória, eu comecei a pensar em escrever este livro para colocá-la no papel real do personagem da história do Brasil, da luta contra a ditadura e pela volta da democracia.
Marcelo Rubens Paiva
Selton Mello encarou o desafio de viver Rubens Paiva e ser central na parte solar da história. Para o ator, que perdeu a mãe recentemente também para o Alzheimer, ver o filme hoje tem valor mais especial ainda.
Foi louco fazer este papel. Minha missão era preencher a tela com minha luz, graça. E foi muito único porque eu sabia o final, mas tinha que atuar como se não soubesse, o que é muito difícil. Eu estava completamente sobrecarregado durante esta filmagem. Eu caí de bicicleta e no início das filmagens eu tive de atuar com muita dor. Foi lindo. E Walter tem este talento especial. Seus filmes são grandes experiências cinematográficas, mas são experiências muito humanas também. Foi um grande prazer deixar minha marca no início do filme porque eu sabia que fazendo meu papel eu também estava ajudando Fernanda. Ela e o espectador teriam de sentir falta desse pai. É um filme sobre família feito por uma família. Eu perdi minha mãe recentemente, de Alzheimer. Vocês podem imaginar assistir a este filme, ver o final com Fernanda Montenegro, que no Brasil é uma rainha, ela é como uma mãe. De certa forma, Fernanda é minha irmã também. Estou muito feliz de estar aqui.
Selton Mello
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