Flavia Guerra

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Reportagem

Com Daniel Craig, 'Queer' é sobre paixão e fragilidade, mais que sexo

Muito mais que um filme para chocar ao trazer o símbolo da masculinidade contemporânea Daniel "James Bond" Craig em um papel homossexual protagonizando cenas tórridas de sexo, "Queer" é um filme sobre o quão patético e frágil se pode estar ao se perceber perdidamente apaixonado. Em vez de se colocar no lugar de defesa, de medo e rejeição de um sentimento que passa a reger a vida, deixar-se ser, como diria Fernando Pessoa, ridículo, assim como todas as cartas de amor.

Esta foi a intenção do diretor Luca Guadagnino ao transpor a história de "Queer" para o cinema.

Inspirado no romance "Diverse", obra semiautobiográfica de William Burroughs, o filme estrelado por Daniel Craig fez sua estreia mundial no Festival de Veneza 2024 na noite de terça-feira (3) e surpreendeu, como já dito, não necessariamente pelas supostas cenas explícitas de sexo entre o James Bond contemporâneo e o jovem Drew Starkey, mas sim por trazer o ator britânico em um papel que faz dele quase um tio cringe em alguns momentos, desengonçado diante do objeto do desejo e do amor, fragilizado, quase patético.

É este lugar de fragilidade e dependência que a paixão coloca a todos e todas, sejam queers ou heterossexuais, que o cineasta quer investigar em seu novo longa. "Eu queria redimensionar a palavra 'queer' e que ela passasse a significar o quão frágil cada um de nós é ao assumir uma paixão", comentou o diretor em conversa com a imprensa em Veneza. E de fato, quando consegue fazer isso, "Queer", o filme, é grande, lisérgico, sedutor e apaixonante.

No entanto, há que se convir que Guadagnino nem sempre acerta em cheio e oscila entre grandes filmes como "Me Chame Pelo Seu Nome" e "Rivais" e outros apenas medianos, como "Suspiria" e "Até os Ossos". Mas também há que se convir que ele filmar a paixão, o amor e seus efeitos, sejam eles práticos, psicológicos ou emocionais, como poucos.

"Queer" não se trata, infelizmente, de um grande filme no quesito condução da história, que é fragmentada e oscila entre ótimos momentos e outros nem tanto, que quebram a consistência de uma história que não sabe muito bem para onde vai.

Em linhas gerais, o filme conta a história de Lee (Craig), um quarentão americano que, nos anos 1950, sofre de dependência em opioides e decide ir para o México para tentar se afastar das drogas. Obviamente que não dá certo e ele afunda cada vez mais entre sexo casual, as doses da droga e o consumo intoxicante de álcool, variando entre muita tequila, mescal, rum, whisky e afins. Entre uma noitada e outra pelos bares da cidade, cruza com o jovem Allerton (Starkey). A paixão é imediata, avassaladora.

A priori, parece impossível, mas acaba se realizando. O primeiramente distante, mas provocador Allerton acaba caindo no charme estabanado de Lee e as cenas de sexo entre os dois são os melhores momentos do filme. Obviamente há quem se paute só pelo fetiche de ver "James Bond' fazer sexo oral (nada explícito, mas muito bem sugerido), beijar muito e se agarrar tanto lascivamente quanto com ternura com outro homem.

Mas quem embarcar nesta viagem lisérgica de Guadagnino vai encontrar beleza em momentos de um amor inalcançável, ainda que real, em que a combustão provocada por duas almas que se desejam e se amam dá medo e, em vez de unir, repele e separa. Afinal, como em muitos casos de paixões tórridas, o fato dos dois se desejarem e se amarem não é garantia de nada. Tudo que é sólido desmancha no ar e Allerton parece tão etéreo e inalcançável quanto a planta quase mágica com a qual Lee sonhar, o yage.

Entre os antigos vícios e a dependência emocional que desenvolve por Allerton, Lee também é obcecado pela ideia de consumir a planta usada pelos indígenas da América do Sul para rituais e pesquisada até pelos americanos para fins de telepatia, o yage, que nada mais é do que a milenar ayahuasca. Os caminhos que levam os dois até finalmente encontrá-la em plena selva, com a ajuda de uma pesquisadora, são tão tortuosos quanto a representação "para gringo ver" da selva e da cultura indígena, mas funcionam como símbolos da impossibilidade deste amor.

"Eu queria compreender ao máximo o imaginário de Burroughs e não fazer um filme datado. Eu li este livro quando era um adolescente solitário na Sicília e, ainda que uma história curta, me conquistou profundamente e foi uma grande experiência para mim. E era isso que eu queria trazer para o cinema", explicou Guadagnino.

Já Craig, que se revela com o papel um ator corajoso, capaz de encarar perguntas como "seria possível um James Bond gay", encarou o papel com honestidade e também a capacidade de se colocar em um lugar de fragilidade. "A razão de eu fazer este filme é que eu, se visse este filme e não estivesse nele, iria pensar que queria estar. Eu queria trabalhar com o Luca há muito tempo. É o tipo de filme que eu quero estar, quero ver, quero fazer. São desafiadores, mas incrivelmente acessíveis. A gente sempre conversou. Uma das grandes qualidades de Luca é que ele, ainda que tenha uma opinião muito forte, quer ouvir a opinião de todos. E isso é realmente importante para ele e é tão libertador. Eu não olho para este filme como um desafio, mas como uma alegria", contou Craig.

Vamos ser adultos por um segundo: ninguém vai saber sobre os desejos de James Bond. Ponto. A coisa importante é que ele realiza bem suas missões. Dito isso, eu admiro este senhor há muito tempo e eu tinha a intuição que me sufocava, pois eu sou pragmático. Mas achei que ele nunca diria sim. E a gente apenas perguntou e ele disse sim. Ele é um dos grandes atores do mundo hoje. E isso se deve muito à sua capacidade de ser generoso, de ser muito mortal em cena, de se colocar no lugar da fragilidade. E poucos tem isso. E poucos atores icônicos permitem que essa fragilidade seja vista. E Daniel tem isso. Luca Guadagnino

Um ponto interessante do filme é que a canção que encerra o filme é cantada por Caetano Veloso, extraída do diário de Burroughs, do que ele escreveu três dias antes de morrer, e diz: "Nosso amor vai crescer mais que impérios". "Daniel, em nossa primeira reunião por Zoom, disse que esta seria uma história de amor mais vasta que impérios. E a gente foi fiel a isso e discutiu muito sobre o que é amar e ser amado, se conectar e se desconectar", revelou o cineasta.

"Queer", afinal, é sobre isso. Sobre algo, como também diz Guadagnino, muito universal a qualquer ser humano, seja a paixão, o amor, a dependência em drogas, amor ou o em outro ser humano. "Eu amo a ideia de observar as pessoas e não julgá-las, de me conectar às pessoas. Nossos vícios são algo tão humanos. É isso que faz um cineasta, encontrar humanidade até mesmo em nossas sombras mais obscuras", finalizou o diretor.

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